Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

3 MIN DE LEITURA | Revista 34

A hora dos zorzais

Entre o poisar do sol no horizonte, naquele instante antes da sua descida, e o último raiar do crepúsculo existe “a hora dos zorzais”. Até onde a minha memória alcança, recordo-me deste dizer pela voz do meu pai, em homenagem ao movimento dirigido ao reencontro quando o dia chega ao fim. O movimento do regresso ao ninho faz-se na despedida da luz e o voo em bando faz-se com a saudade do amanhã que há de vir. Nesta expressão e nas raízes do meu imaginário moram os contornos sépia das azinheiras, o horizonte aberto da planície e o sopro quente do trigo.

E tal como os zorzais, procuramo-nos, entre o anseio por notícias e o desejo de regresso ao lugar onde se nutre o coração. No olhar ou no telefone e antes do jantar.

Casas de pássaro, casa-árvore, galhos, poleiros suspensos, ninhos-casa, casas-ninho recebem-nos no abraço e no aconchego. Neles dá-se colo aos desgostos e aos prantos e fazem-se preces às alegrias da existência. Que o dia trouxe, que a noite repara e protege. A hora dos zorzais espreita em cada coração. É força motriz que calcorreia cada dedo, perna e antebraço, cada asa e barbatana, que nos lança na direção uns dos outros. Bandos, cardumes, enxames em direção a um mesmo lugar: casa. Casa lar, enquanto chama que brilha na paisagem e nos chama para ela. Estrela Polar. Casas abrigo, casas porto seguro. Sem elas o voo não se faz e o reencontro não acontece. Sem a segurança da base e do laço, as asas não se abrem livres para os céus nem a rota da aspiração se revela. Confusos e perdidos, os zorzais, não voltam porque nem sequer chegam a partir. 

Por entre devaneios psicológicos e acrobacias metafóricas, a hora dos zorzais esvoaçou para além da paisagem alentejana e tornou-se para mim também uma alegoria ao vínculo que, ao mesmo tempo que sustenta, consente a separação. É a hora do amparo que não sufoca. É a hora da proximidade que só a alteridade nos permite. Porque afinal ninhos não são gaiolas. São construções orgânicas, flexíveis e fluidas que se retocam e se refazem no movimento perpétuo do encontro e do desencontro. São o continente que estrutura o pensamento e que semeia o sonho. Porque afinal os pássaros são tão exímios no voo como o são na comunicação. São fluentes na linguagem da aproximação e da despedida, canto e diálogo que vive da espontaneidade da alma e dos sinais da estação. 

É a comunicação que nos organiza ou desorganiza. A comunicação do gesto, da crença, do legado, da história do afeto ou da ausência dele. Vicente chegou de asa quebrada e de sonho perdido. O início da idade adulta parece trazer à flor da pele e ao espaço terapêutico a desorientação do sentido e a vulnerabilidade da estrutura. Por entre os segredos que herdou da sua árvore genealógica, um pinheiro imaginei eu, e as agulhas da rejeição, deprimiu. A flor da pele foi revelando a ferida naquela hora marcada comigo, também ela à tardinha, e a possibilidade de um lugar-casa para além da ferida foi sarando a asa de Vicente. 

Foi necessário resgatar a possibilidade desde a raiz, a partir da relação com a própria Terra, com o próprio chão.

Porque é na Terra e a partir do chão que nascem todas as árvores. E todas as famílias. Sejamos nós ramos de pinheiros, amendoeiras, azinheiras ou castanheiros, devemos a vida à Terra e ao chão. Sarar a ferida da árvore e da família de Vicente envolveu chorá-lo e dar-lhe lugar. A partir da Terra e a partir do chão. Vicente chorou os abandonos e os conflitos não chorados, mas chorou também as dores da própria Terra, as dores de todas as árvores e as dores de todos os pássaros que delas fazem a sua casa. O luto ecológico e o luto transgeracional dançando de mãos dadas. 

Vicente entendeu que é também na própria árvore que está o remédio. A Terra recebe o que já não é para ser, ao mesmo tempo que oferece o pulsar do chão vivo. O coração de Vicente voltou a pulsar ao ritmo da Terra e o seu sangue voltou a correr ao ritmo da seiva de um pinheiro. Abriu asas e voou. Regressa à sua árvore todos os dias quando o sol se despoja de luz. Chora, ri, canta e adormece. Como um zorzal.

*o zorzal (Turdus pilaris) é uma ave da família dos Turdídeos

A comunicação do gesto, da crença, do legado, da história do afeto ou da ausência dele. Vicente chegou de asa quebrada e de sonho perdido.

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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