artigo de élia gonçalves

O Desencontro dos Fios

6 MIN DE LEITURA | Revista 33

Quanto se perde quando nos habituamos a olhar as estórias familiares como algo sobre nós, que nos enalteceu ou prejudicou, colocando-nos no centro da tela? O que se ganha quando a estória não é sobre nós e nos coloca como um fio que pertence a uma trama há muito tecida? Um olhar sobre linhagem, pertença e herança comunitária.

“Como suportar, como salvar o visível, senão fazendo dele a linguagem da ausência, do invisível?”

Rainer Maria Rilke

Quando eu era pequena recordo-me de um grande amigo do meu pai, muito mais velho do que ele, com quem ele passava horas a conversar. Lembro-me de, com três ou quatro anos, ir a casa dele com o meu pai e ficar a ouvir sobre as estrelas, sobre a origem da vida ou a existência de vida noutros planetas. Mas também outras histórias. Este senhor tinha uma mercearia onde vendia, entre outras coisas, pão e queijo fresco caseiros. Todas as segundas e quintas-feiras, lá ia ele para um monte próximo de Beja, de onde era oriundo, a casa das duas anciãs que faziam o pão e o queijo. 

Estas duas mulheres tinham uma particularidade, pelo menos era assim que eu o percebia. Hoje entendo que faz parte dos conhecimentos antigos, das tradições próprias da sabedoria do povo. Ao fazer os queijos e pô-los a fermentar, as duas anciãs cantavam uma ladainha própria, antiga, que, segundo o amigo do meu pai – e vendedor dos queijos – era o que lhes dava um sabor inconfundível.

Alguns anos mais tarde, já as senhoras tinham falecido, perguntei a este homem, que já não tinha mercearia, se haveria forma de voltar a poder comprar o pão e os queijos. Ele respondeu-me: o pão, sim. Os queijos não. De facto, havia pessoas que os queriam continuar a fazer, mas na sua racionalização de tarefas, tinham-se recusado a aprender a canção. E, por isso, as anciãs recusaram-se a passar o conhecimento. 

Esta história sempre me comoveu. Imaginar duas anciãs a cantar uma ladainha antiga para a fermentação dos queijos. É como se estas mulheres tivessem tido acesso a algo que eu perdi, que nasci sem saber que existia. Um lugar onde – sem fantasias ou floreados – se dança entre o visível e o invisível como fios.

Os sufis tinham um termo para esse lugar de magia, um mundo meio invisível que se envolve no mundo visível por vários campos. O “Mundus Imaginalis” que, na tradução correta do nome usado, significaria algo como “A terra de Lado nenhum”, ou “o oitavo clima”. 

A terra de lado nenhum é o reino da alma e aqui entram os sonhos, os arquétipos, a imaginação, as grandes histórias, as canções tradicionais e também a pintura, a tecelagem e tudo o que é arte se pensarmos de que parte de nós esta surge. 

O Mundo Imaginal existia entre o que se poderia chamar “a terra e o céu” e, não se sabendo se acedemos a ele ou se ele nos sonha a nós, através das grandes mitologias, chega-nos através do que podemos chamar “imagens”, não necessariamente visuais, mas sensoriais, emocionais, arquetípicas, trazendo uma sensação de reconhecimento e despertando um lado profundo nas nossas vidas. Para cada história do mundo, existe uma imagem primordial revestida por uma cultura.

Por isso é tão fácil mudar as histórias da forma como, por exemplo, algumas religiões o fizeram. Usa-se uma imagem primordial e rearranja-se uma história por cima sem lhe tirar completamente a verdade. Mantendo esta ressonância primordial que nos toca, sentimo-la como verdade, ainda que revestida de forma totalmente diferente da primeira versão da história. 

No mundo imaginal o linear não existe e conectamo-nos à informação de forma subjetiva. Ele não depende do que lemos ou do conhecimento que acumulamos. A verdade é que nos conectamos às “imagens” através da emoção. E é pela emoção que nos relacionamos com as histórias e as guardamos. 

Quando se conta uma história, há que permitir nutrir a conexão entre quem a conta e quem a escuta, entre os lugares descritos e as imagens primordiais que evocam. Que sensação o contador de histórias traz nas palavras? Que emoção me fez sentir? O que despertou em mim? A forma como eu me relaciono com a história implica na forma como ela me transforma, como eu vou viver a partir daí e como me conecto com os elementos descritos.

Ensinar uma ladainha para fermentar um queijo tem um lugar interno diferente de ensinar ingredientes, tempos de fermentação e seca. A primeira forma, se me tocar profundamente, fará com que eu não esqueça mais. É assim que se transmitem valores, heranças familiares e culturais. 

Com a separação da corpo e mente, no século XVII, criou-se uma filosofia que objetifica aquilo que olha. Procura respostas, em vez de contemplar as perguntas. Por isso, a nossa forma de nos relacionarmos com o todo mudou também e, nessa transformação, perdeu poder. Aquilo que existia no mundo e fazia parte desta Terra de lado nenhum foi-se anulando e remetido para o chamado “folclore”. E, no entanto, folclore significa “sabedoria do povo”, aquilo que as tribos sabiam instintivamente, o que traziam na bagagem e ritualizavam.  

Criámos, por isso, uma psicologia criada sob a divisão e na qual o estudo da alma passa a ser o estudo do homem como o centro do universo e as suas circunstâncias como a única coisa que importa. Neste lugar, o sonho deixa de ter um lugar próprio e começa a ser trazido para as circunstâncias pessoais de cada um. E as histórias são remetidas para lugares infantis ou algo a despir, interpretar, desvendar. Esquecemo-nos de nos abrir ao Imaginal e permitir que este nos transforme, que os seus fios entrem na teia e despertem uma criatividade emergente em mim. Pois a ligação ao mundo Imaginal é como uma tecelagem. Fios aparentemente desencontrados que se vão cruzando e acabam por formar imagens que são reflexos da alma de cada um. 

Num lugar de escavação racional, perdemos demasiado tempo a querer interpretar-nos, assim como à infância, à mãe e ao pai, aos processos pessoais. Não que estas coisas não tenham importância, mas o dispêndio de energia que gastamos com isto traz-nos uma sensação de que tudo é sobre nós. E esta é uma história que foi modificada sobre uma imagem primordial. Mais do que levar-nos a lugares de expansão, o foco único nesta versão do mundo retira-nos do todo. Limitamos a nossa Imaginação, tudo o que somos, a uma história que nos contaram sobre como o pai ou a mãe nos trataram. Perdemos, aqui, a capacidade de pertencer ao mundo.

Onde é que estão as outras histórias? Onde é que estão as histórias das nossas vidas? Das anciãs que cantam canções? Das marés e do luar? Das sombras que acenam por entre a folhagem, numa noite de caminhada ao bosque? 

Quais são as nossas histórias que não são contadas num gabinete de terapia, que às vezes nem são contadas, mas que todos temos e guardamos dentro? As mouras das nossas terras, os namorados nos canaviais, o primeiro beijo. A chegada das andorinhas e os ninhos que faziam nas varandas dos prédios? Ainda estamos atentos a elas? Ainda as vemos como um sinal da Primavera? Podemos contá-lo aos nossos filhos? Ainda nos deixamos encantar no mundo? Que histórias despertaram o nosso oitavo clima, nos fizeram reverenciar o mundo e pertencer a ele? Que histórias fazem diferença na forma como vivemos a vida?

Quais os fios que, desencontrados para se voltar a entrelaçar, criaram a trama sob a qual nos movemos, tenhamos disso consciência ou não? 

Perder a conexão a este invisível que faz parte do mundo é perder uma dimensão da relação com a vida, com o Mistério, com aquilo que este nos foi acrescentando e tornando permeáveis a lugares internos que nos fortalecem.

Sem a ligação a este lugar, vivemos como Erisícton, um Rei de Tessália que tinha tanto poder que ele deixou de temer e de reverenciar os deuses. Um dia, ao passar num bosque, encontrou um maravilhoso carvalho. Diziam que era um carvalho sagrado, mágico, pertencente à Deusa Deméter. Mas como ele não reverenciava os deuses, viu unicamente tanta madeira que resolveu cortar o carvalho. 

Ao dar-lhe a primeira machadada, o carvalho começa a sangrar e um dos criados comoveu-se, colocando-se à frente do mesmo. O Rei, na sua arrogância, cortou-lhe a cabeça e continuou a cortar o carvalho na tentativa de o derrubar. As dríades da floresta, assustadas e zangadas, recorreram a Deméter e pediram-lhe que o castigasse.  A Deusa, furiosa, lançou-lhe uma maldição. “Tudo o que comeres a partir de hoje só te vai trazer mais fome.” O Rei, começou a comer e quanto mais comia, mais fome tinha. Gastou todo o seu dinheiro e todos os seus recursos em comida. Quando deixou de ter dinheiro, trocou a própria filha por comida. E quando já não tinha absolutamente nada, comeu-se a ele mesmo. 

Esta história é o mundo nos dias que correm. Parece que há uma fome que nunca mais acaba, que nos faz consumir o que não precisamos, utilizando tudo como recurso a nosso proveito. Mas a fome não acaba. E que fome é esta? 

Talvez seja uma fome que vem da alma. Talvez seja um anseio de estar disponível para pertencer à vida, dançar entre o visível e o invisível. E, se a escutarmos, talvez as histórias que contamos mudem. Ou os nossos sonhos comecem a trazer-nos algo diferente. Trazemos como herança também esse transmitir do mistério (nas formas simbólicas como o mistério pode ser contado). Recolectar pedaços que fazem parte de nós, desde um lugar mais subjetivo, mas emocionalmente mais são. A psicologia utiliza o termo “Re-membering. Remembrar, trazer de volta os elementos que importam, sem me preocupar com a linearidade das coisas. 

Alarguemos o nosso espetro de memórias, recoletando as histórias visíveis e invisíveis. Desmontando-nos a nós e aos “dados adquiridos”.  Saindo do confortavelmente desconfortável e desfazendo fios, tricôs, palavras, certezas. O desfazer permite um novo ser ou, pelo menos, uma atualização de quem somos. Que possamos ter fome, sim, mas de sagrado e da fonte de mistério que todos ansiamos. Mesmo quando não o sabemos.  

Talvez seja uma fome que vem da alma. Talvez seja um anseio de estar disponível para pertencer à vida, dançar entre o visível e o invisível. E, se a escutarmos, talvez as histórias que contamos mudem. Ou os nossos sonhos comecem a trazer-nos algo diferente.

Élia Gonçalves

Élia Gonçalves

Colunista e Autora regular da Revista

Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal

Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa 
Autora do Mito de Ophídia

elia.gonçalves@escolatranspessoal.com