artigo de maria trincão maia
Não há Bolo de Chocolate
5 MIN DE LEITURA | Revista 33
Enquanto passava os olhos de relance pela mesa das sobremesas, percebeu o espaço vazio. Seguiu em frente para que aquele vazio não começasse a expandir, engolindo toda a mesa, sala, casa… seguiu sem permitir que os pensamentos voltassem para aquele lugar. Pelos longos corredores chegou à cozinha e começou a cantarolar. O cheiro frio de inverno fazia-se notar, o ar húmido e gelado era tão desconfortável. Não percebia se havia mais frio dentro ou fora de casa naquele momento, e com os dedos já a gelar pela inatividade começou à procura do livro de receitas. Percorria as lombadas na busca do livro que lhe daria a resposta que procurava, a receita. Era um livro velho, sujo, gasto e de capa rasgada com uma dedicatória do autor perdida no tempo. No tempo de outras vidas, de outras histórias que não a dela, mas que carregava.
O livro teimava a não aparecer, devia estar noutro lado, como todas as coisas que se procuram, por norma, estão no outro lado. Às vezes fora do lugar, outras vezes no seu devido lugar. Saiu de novo para os corredores longos e escuros que pareciam estreitar e dilatar à medida que avançava, havia sempre vida para além da vida que conhecia da casa. Chegou a outra estante de livros, a outra divisão, mas o mesmo frio, a ponta do nariz já estava tão gelada. E continuou à procura do livro. Sempre odiou o frio do inverno em casa, tinha-se assumido fria, gelada, húmida de inverno e parecia uma condição perpétua e irrefutável. Era assim, podia ser outra coisa qualquer, mas era fria e húmida. Especialmente aquelas duas divisões, que deviam ser calorosas e luminosas, cheias de vida.
Porém mantinham-se fiéis a uma dor desconhecida, estavam de luto há décadas. Encontrou o livro entre outros, entre tantos outros ali esquecidos, folheou-o à procura da receita e lá estava ela. Dirigiu-se para a cozinha, atalhou caminho por entre outras portas para chegar mais depressa. Começou a seguir a receita, não gostava de receitas, pareciam passos fechados para um resultado pouco criativo. Não era doceira e queria tanto que o bolo saísse igual que não se atreveu a fazer de outra forma. E passo a passo foi fazendo, enquanto saltitava de lembrança em lembrança. De risos e gargalhadas, de brincadeiras e parvoíces. Era sempre uma casa cheia, tanto barulho e tanta algazarra que abafava tudo o resto. Todas as vozes, todas as histórias entranhadas nas paredes. Quanto mais se falava menos se ouvia. O bolo foi para o forno numa forma redonda, como o original. Enquanto o forno cozia, foi fazendo uma calda de chocolate.
Via o leite a fundir no açúcar, na manteiga e no chocolate, enquanto mexia com uma colher de pau pequena, fininha. E mexia lentamente, enquanto se perdia no remoinho que a levava para um lugar distante, desenhado e pintado de outras cores, de outros enredos e finais. E mexia com a colherzinha enquanto sabia que aquele gesto não era só dela, ou das suas ancestrais, era de todas as mulheres, vivas ou mortas, nascidas ou por nascer. Ouviu ao fundo o despertador do telemóvel que a trazia para o tempo presente e para o fim da cozedora do bolo. Desligou a calda e espreitou para dentro do forno, o bolo ainda não estava pronto. Sentou-se no chão gelado, com a brisa desagradável a passar por baixo da porta da rua e a subir-lhe pelas costas. Tremia, mas não se movia. Havia algo de encantador naquele processo de cozedura onde ansiava pelo resultado, o bolo cresceu tímido. E quando voltou a tocar o alarme, já não era preciso porque o bolo já estava fora do forno. Ficou com a esperança que o quente do forno dissipasse ligeiramente o frio da cozinha. Esperança vã, via agora a sua respiração e lá fora tinha-se tornado escuro como breu. Com jeito e esperança desenformou o bolo na perfeição, com deleite e amor deitou a calda por cima do bolo até o cobrir todo. Com orgulho infantil olhou para ele e compreendeu que estava igual a imagem na sua memória. Percorreu de novo os longos corredores e no lugar vazio, colocou o bolo de chocolate igual ao original.
O tempo andou, calmo e sereno, agora haviam vozes, a casa já não estava vazia e as cadeiras estavam ocupadas, mas não todas. A mesa posta na sala de estar, tornava o jantar mais intimista, mais real. Havia menos algazarra e mais histórias. Mais espaço e mais calor, estava tão quente a sala que os casacos tinham que sair. E o frio que vinha da divisão ao lado era apenas bem vindo como um equilíbrio de temperatura. As sobremesas foram trazidas uma por uma para a mesa e o bolo de chocolate foi o último. Com a mestria de quem sabe o que estava a fazer, abriu o bolo e começou a distribuí-lo. Olhava para ele na sua condição de cópia perfeita e resplandecia de contentamento. De bolo já no seu prato… deu a sua primeira dentada. E lágrimas escorreram pela sua face, foi transportada por todas as memórias que tinha visitado durante a tarde. Todo o seu corpo reagiu naquele momento… E o bolo não era o mesmo, não era igual ou similar. O vazio abateu-se e apoderou-se dela naquele momento e quanto mais comia mais vazia ficava. E o mundo parou…
Ouvia ao longe um despertador que demorou a identificar, vinha de um outro lugar que não o qual ela estava naquele momento, mas teimava em tocar. Demorou a perceber onde estava, ainda não se tinha habituado à nova paisagem, era o despertador do forno. Tinha adormecido no chão da cozinha enquanto o bolo fazia. Lá fora a chuva caía convicta de que o chão a chamava, lutando contra as rajadas de vento. Era inverno, frio e rigoroso como todos os invernos são. Abriu a porta do forno e o calor que vinha lá de dentro aumento o calor da cozinha, limpou o suor misturado com o vapor daquele momento e sorriu. O seu bolo tinha ficado exactamente como queria. Pousou o bolo em cima da bancada, junto ao livro de receitas de capas reluzentes e saiu da cozinha em direcção à casa de jantar. Os longos corredores estreitavam e dilatavam-se conforme era sua vontade e quando chegou à casa de jantar lembrou-se que podia ter atalhado caminho pelas portas. Passou pela estante dos livros e foi até ao aparador onde escolheu a dedo o prato para o seu bolo. Ouviu alguém a chegar, eram mais que alguém, eram muitos “alguéns”, a casa já estava cheia. Ouviam-se histórias e risos, quando voltou para a cozinha já estavam pessoas lá. Sorriu, e com orgulho dirigiu-se para o seu bolo. Com jeito e amor desenformou-o, com deleite colocou flores e fruta no seu topo redondo.
E alguém lhe perguntou:
– E o bolo de chocolate?
– Não há bolo de chocolate. – respondeu.
– Então este é o que? – retorquíram.
– É um Red Velvet.-
Percorreu de novo os longos corredores e no lugar vazio, colocou o bolo de chocolate igual ao original.
Maria Trincão Maia
Editora da Revista
Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.
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