artigo de ana alpande
Descolonizar a Imaginação
8 MIN DE LEITURA | Revista 33
Lançamos a proposta de neste encontro ir à procurade possibilidades de diálogo entre o espaço familiar e a imaginação.
Não faço ideia do que poderá significar “descolonizar a imaginação”, nem para onde é que me pode levar, mas sei que descolonizar é um verbo que está no infinitivo: teve um começo, ninguém sabe quando, ou com quem, para onde foi ou porque foi; se tiver um fim ninguém faz ideia quando ou com quem será.
Para adentrar os territórios da imaginação o ideal é mesmo não me preocupar em demasia com os nomes, as definições, os traços riscados na folha que tão convictos de si, logo geram fronteiras, ilhas assépticas fechadas à própria potencia indomável da imaginação. Então este artigo não está ao serviço do leitor, nem tão pouco de mim mesma, presta-se antes a deixar-se guiar pela própria vontade da imaginação, assim ela pretenda nos agraciar com sua presença.
Quando permito que a ideia “descolonizar a imaginação” se encontre no espaço aberto da minha mente, vêm-me duas pessoas à cabeça:
O poeta, filósofo e místico John O’ Donohue que partilhava, muitas vezes, nas suas entrevistas que a imaginação fazia parte da respiração da sua paisagem natal. Para se encontrar com essa imaginação procurava sair todos os dias de casa praticando o acto radical de se deixar em paz. O “acto radical de nos deixarmos em paz” é segundo John, o primeiro passo para aceder aos territórios selvagens da imaginação.
Penso ainda na artista e investigadora Heather Barnett que tem uma carreira dedicada ao estudo e interação com sistemas biológicos, impedida de aceder a laboratórios ou trabalhos de campo durante o isolamento de 2020, aproveitou o tempo em casa para aprofundar a sua relação com a complexa rede de sistemas da sua pilha de composto, aproveitando para observar e registar a forma como os vários sistemas abertos de uma pilha colaboram e ressoam. A Heather não é cientista, ou seja, não está interessada em explicar de forma concreta o que é acontece entre bolores, restos de comida, insetos e aparas de jardim, o que a fascina é a observação de modelos de cooperação e adaptabilidade, uma forma de sair dos limites da cultura humana e expandir as suas possibilidades imaginativas com a colaboração dos seus admiráveis “pequenos” vizinhos.
Não faço ideia do que é que quero dizer em concreto com “descolonizar a imaginação”, mas suspeito que há de ter qualquer coisa a ver com a forma como imaginamos o tempo e relacionamo-nos com o espaço, o “acto radical de nos deixarmos em paz” pode muito bem ser o primeiro passo de uma grande aventura para lá das fronteiras do Antropoceno, estirando os limites da nossa mente humana até ao ponto de interceção com o não humano. Tanto o John quanto a Heather com as suas formas únicas e insubstituíveis trilham este limiar.
Aprendi com a Heather a ter cuidado com a pressa em dar nomes às coisas, dar nome muitas vezes implica cortar a relação. Quando damos um nome a alguma coisa, corremos o risco de limitar o seu campo de possibilidades, cristalizar a sua forma definindo significados, por isso é que os laboratórios científicos precisam de artistas e filósofos residentes, para contrabalançar a tentação de fechar um fenómeno/elemento na sua explicação. A Heather refere-se sempre a sistemas quando fala dos sujeitos de sua observação/investigação. Para mim esta palavra revolucionou a forma de me relacionar com os meus interesses e estudos, o conforto que tinha nas definições apuradas e definidas pelos anos de experiência no meu trabalho ou até mesmo na relação com o meu corpo. Elevado ao reino da imaginação nada é finito per se, toda a existência é matéria-prima num constante vir a ser.
A minha autoconsciência determinou que sou a Ana Alpande, mas na verdade, não sou apenas a Ana Alpande, a Ana é parte da consciência que escreve e se reconhece como sendo, mas o que sou é bem mais complexo e vasto que isso.
Eu sou, entre muitas outras coisas, um lugar.
Os meus intestinos, por exemplo, são casa de uma série de bactérias e micro-organismos que habitam e colonizam este espaço, estes organismos precisam de uma casa, um meio que seja propício à sua sobrevivência e replicação, sem eles não tenho como ir para fora e viver no mundo, fico sem viabilidade biológica; sem mim eles não tem meio de sobrevivência. Há toda uma inteligência não humana que me permite relacionar com o mundo enquanto sistema aberto e recíproco e é essa inteligência que cria redes e conexões, sinergias, relações simbióticas e reciprocidades. Ao humanizar todas as inteligências, cortamos o laço à conexão profunda que temos com a Terra e seus sistemas, cortamos conexão connosco mesmos numa alienação tóxica que mata e extingue a diversidade e pluralidade do conjunto de relações a que damos o nome de “Eu”.
Às vezes apanho fruta da árvore e não a lavo, para dar oportunidade a que uma série de microrganismos possam encontrar morada dentro do meu intestino, juntos iremos partilhar uma história de cooperação e interdependência cuja madrinha de casamento é a paisagem que nos serve de morada, o meio onde eu e a árvore vivemos e através do qual nos alimentamos e cooperamos.
Acredito que existe uma relação directa entre a paisagem onde vivo e a comunidade diversa que sou. Fechar-me ao contacto profundo e diverso com a minha paisagem é fechar-me à própria reciprocidade e colaboração inerente aos sistemas que me atravessam, falo por exemplo, desde a observação e contemplação artística e filosófica, até à alimentação, ecologia, mitos, tradições etc…
O John com a sua arte de “se deixar em paz” conseguiu de forma profunda escutar os ecos de memória da tradição celta, abrindo portas a uma fértil regeneração cultural e espiritual que continua a guiar e inspirar pessoas como eu, mesmo depois da sua precoce morte em 2008. A Heather tem ajudado comunidades a explorarem novos modelos de cooperação e resolução de problemas, tendo como base o que tem vindo a aprender com sistemas orgânicos como: bolores, micróbios e entre outras coisas, pilhas de composto.
Durante muito tempo ia regularmente conversar com uma pedra vizinha, adorava aquela pedra, ainda adoro. Há alguns anos descobri que essa pedra tem cerca de sessenta mil anos, quando um amigo geólogo deu-me a novidade fiquei pasma. Tive aulas de geologia na escola e tinha lido vários livros sobre o tempo geológico do nosso planeta, mas nunca pensei na minha pedra como fazendo parte de algo tão longínquo e abstrato quanto a história do planeta Terra. No entanto, eu participo dessa relação com o tempo profundo, ainda que por efémeros instantes com a minha brevíssima vida. Se sair do humano e experimentar olhar a pedra através da imaginação, rendo-me imediatamente a um lugar que não é comum na nossa espécie – a nossa insignificância.
Desde há quatro anos que vivo à procura das pedras mais antigas do nosso planeta, esta conversa que iniciei com a minha pedra vizinha tem se expandido pelos territórios da minha imaginação, se 60 mil anos era muito, agora começo a conseguir abarcar 3 mil milhões de anos dentro de mim, a idade das pedras mais antigas que conheço. Ainda com algum desconforto físico, a medida gigante de tempo já vai encontrando maneira de integrar a minha consciência, isto porque a imaginação assim mo permite.
Hoje em dia, quando penso nos anciões granitos da minha paisagem, percebo que até eles são jovens criaturas acabadas de chegar a uma nova e excitante realidade, afinal de contas, só têm 60 mil anos!
Quando permito-me ser habitada por estas imagens a minha relação com o tempo e o espaço altera-se, o que muda inevitavelmente o meu estado de consciência e a perceção do humano no mundo.
Tal como a Heather, eu também tenho uma forte paixão por observar sistemas, para além de conversar com pedras, os líquenes são uma das minhas grandes paixões.
A nossa relação começou quando comecei a estudar tinturaria vegetal para os meus projetos têxteis em 2011, vivia na altura em Oeiras e a minha relação ainda se fundamentava na precária perspetiva de usufruto/benefício do mundo natural. Hoje em dia os líquenes fazem parte de mim não pela sua utilidade práctica mas pelo vínculo que temos e que vou nutrindo com a minha atenção. Com eles vou conseguido contornar os meus receios em relação ao futuro da existência humana, através deles sinto-me chamada a imaginar florestas de diversidade simbiótica, e a participar da sua comunidade, espaços potentes de cooperação e corregulação regenerativa. Graças a eles tenho vindo a despertar para perguntas e possibilidade jamais possíveis de vislumbrar dentro do “eu humano”.
Mesmo perante a velocidade atroz com que florestas centenárias são destruídas todos os anos, sendo confrontada com a diminuição constante da mancha verde do Parque Natural da Serra da Estrela e serras adjacentes, ainda assim, consigo equilibrar o pavor e raiva que sinto com a visão regeneradora da simbiose a que damos o nome de líquenes. Há fértil esperança que fervilha nas redes de sistemas que nos rodeiam e interceptam, e a única maneira de aceder a esse elixir urgente para o século XXI é cultivando espaços conscientes de relação com a imaginação, lugares fora dos limites do “humano”, para lá das fronteiras dos nossos paradigmas culturais.
A imaginação é parte essencial da anatomia das relações interpessoais e transpessoais.
Para além do “acto radical de nos deixarmos em paz” existe ainda a importância de reaprender a conjugar o verbo aborrecer. Quantas vezes é que nos permitimos conjugar o verbo aborrecer? Digo, sem recorrer a estímulos externos e a todas as tentações da era tecnológica?
Há uma riqueza imensa à nossa espera no acto de não fazer absolutamente nada.
Este é um imprescindível fertilizante do solo onde criamos espaço para a relação com a imaginação. O constante assombro dos estímulos artificiais empobrece o diálogo com o não humano, dessensibiliza os sentidos, torna-nos menos permeáveis ao sensível diálogo com o que nos permeia, estes sistemas que nos rodeiam e trespassam.
Um dos meus escritores favoritos, Neil Gaiman que escreveu inúmeros best-sellers e cujo trabalho tem sido ao longo dos anos consistentemente prolifero na área da literatura fantástica, diz que a sua imaginação foi alimentada por livros e por muitas horas passadas sozinho sem fazer nada. Ao lhe perguntarem qual o segredo para o seu sucesso como escritor, o Neil responde que não há nenhum segredo a não ser a regra que impôs a si mesmo de se sentar em frente a uma folha em branco sem poder fazer mais nada a não ser: escrever ou não fazer absolutamente nada. O Neil confessa que o aborrecimento é o espaço de encontro com a sua imaginação que facilita a que da página em branco saltem aventuras fantásticas como Neverwhere ou The Ocean At The End Of The Lane, ou ainda, um dos meus favoritos The Graveyard Book, entre muitos outros sucessos.
O aborrecimento é vital para as crianças, é através do aborrecimento que uma criança olha para um banco e vê um castelo, encontra um trapo e imagina um rio, escuta as assas de uma mosca e imagina a visita de uma fada. É nesta capacidade de se deixar permear pela imaginação que crianças brincam os seus traumas e aflições de forma a sanarem conflitos dentro de si impossíveis de abordar de forma cognitiva.
A nossa obsessão no ocidente tem sido a de construir espaços assépticos onde estamos a salvo do perigo. Essa deturpação da civilização em detrimento do selvagem tem-nos custado a nossa própria natureza, a consciência da natureza que somos, e contribui para a domesticação da imaginação.
Talvez descolonizar a imaginação enquanto acção/verbo seja um acto constante de nos relembrarmos enquanto sistemas que somos, da imprevisibilidade inerente ao facto de sermos uma consciência composta e atravessada por várias redes distintas, das quais não temos nem controle, nem real consciência; esta vasta multiplicidade de organismos e inteligências que dão forma àquilo que conhecemos e ainda não conhecemos.
Neste caso o acto “radical de nos deixarmos em paz”, cultivar o aborrecimento, ou a contemplação das nossas paisagens, passam a ser gestos activos de cultivar relação com aquilo que nos transcende e ao mesmo tempo permeia, não como uma quimera, a sagrada conquista do desconhecido em prol do crescimento da consciência humana, mas sim como um lugar humilde de contacto com o mistério e as várias consciências que nos atravessam.
E tu? Como é que conjugas o verbo “descolonizar a imaginação”?
Talvez descolonizar a imaginação enquanto acção/verbo seja um acto constante de nos relembrarmos enquanto sistemas que somos, da imprevisibilidade inerente ao facto de sermos uma consciência composta e atravessada por várias redes distintas, das quais não temos nem controle, nem real consciência.
Pastoras da Noite
O ciclo da Lua Como Cicerone do Zodíaco
Metodologias de observação, reflexão e escuta.
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Consciência cíclica, ecoastrologia e relação interpessoal entre sistemas.
Vivenciar o zodíaco como um organismo, vector de consciência cíclica.
Partilha, comunidade e corregulação.
Ana Alpande
Colunista e Autora regular da Revista
Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias
A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.
Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.
O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.