artigo de Maria Trincão Maia

Uma Morte Asseadinha

4 MIN DE LEITURA | Revista 54

Sou filha de um professor filosofia, com um especial apreço pelo racionalismo alemão, e de uma jornalista, que andou oito anos num colégio de freiras o que lhe criou uma especial aversão às mesmas. Filha de quem viveu abril, nascida na loucura libertária dos anos 80. Não sou batizada, não fui educada como católica, embora seja tão difícil tirar o catolicismo da nossa pele e mente como tirar os ossos do nosso corpo vivo. Somos contexto e, neste rectângulo à beira mar plantado, há muito que somos coaptados pelo cristianismo ao ponto de acharmos que somos apenas isso, ao ponto de a culpa católica preencher muito dos meus pensamentos. Fui criada como ateia, como alguém para quem a ciência era tudo e que a razão residia em Platão.

A morte sempre andou por perto, criada numa quinta cheia de animais que nasciam e morriam, era um ciclo normal. Um cão que mata um gato, um gato que mata um pássaro, gatinhos e cãezinhos bebés que não sobrevivem, um gato que foge, um cão que foge, os vizinhos que envenenam sem nunca conseguirmos provar.

A vida no campo, longe da romântica ignorância urbana, tem arestas tão cortantes que nos fazem sobreviver à incompreensível hierarquia humana, ao mesmo tempo que esses mesmos humanos trazem consigo o conhecimento de gerações ligadas à terra. Paradoxo dolorosos.

A lonjura dos tempos faz com que esta narrativa pareça fria e distante, mas o sofrimento na altura era grande e real, lembro-me dos meus animais que morreram, que desapareceram, são figuras presentes na minha vida. Chorei anos por uma cadela que desapareceu, sosseguei quando achei que já não haveria forma de estar viva. Pude fazer um luto.

Depois as pessoas também morriam, uma estranha forma de viver entre gerações, a dos meus pais e dos meus avós. Pertenço a uma família de grandes saltos de idades, o meu avô tinha 15 anos de diferença do irmão, a minha mãe tem igualmente grande diferença de idade dos primos. Andávamos em diferentes patamares e sempre fomos habituados a darmo-nos com todas as idades. Mas por este facto também a morte era presente, foram morrendo, as visitas lá de casa foram desaparecendo, já não havia o consultório do primo, onde a avó trabalhava, já não havia o primo que foi a guerra. As amigas da avó deixaram de visitar e ligar. Já não ia acompanhar a minha avó a visitar a cunhada ou a prima.  No dia do meu nascimento, o meu pai foi me ver a maternidade e de seguida foi para o enterro do tio. Então a morte foi sempre uma velha conhecida lá de casa.

Foi-me passado que quando morremos, o corpo que fica já não é nada. Ali já não reside ninguém, já não há vida. Então os rituais católicos que se seguiam eram para a alma. Fez-me sempre confusão, mas por outro lado era um alívio. Existia uma tranquilidade na finitude de tudo, mas uma questão presente: para onde vamos quando morremos? Claro que me declarei ateia muito cedo e segui a vida, a vida com a morte. De todas as mortes que nos habitavam a história, só aos 17 anos veio a mais impactante, o meu avô paterno morreu. E aí as coisas mudaram, porque se morremos e já não resta nada onde é que eu podia ver o meu avô? Passaram-se 20 anos desta morte e já não sou ateia, mas nunca católica ou cristã (na medida que o meu contexto me deixa). Já não acredito que depois de morto o corpo seja só um invólucro sem vida, já não acredito que não haja alma e memórias em todas as células. Talvez o podcast Relembrar os Ossos (de Ana Alpande, Élia Gonçalves, Iris Lican Garcia e Sofia Batalha) tenha muito a ver com isto. Mas passou a ser fundamental para mim a existências de rituais de passagem, lugares de luto.

Neste verão, a linha dos meus avós desapareceu, morreu a minha última avó. Foram 20 anos em que me fui despedindo destas figuras tão importantes. Lembro-me sempre da dureza de todos os funerais, mas lembro-me também da reunião de família e amor. Lembro-me dos primos que vinham, das pessoas que chegavam, dos amigos. Não entro em casa mortuárias, mas fico à porta, de guarda, as pessoas chegam e vão.

E antes do COVID, embora longe dos rituais de relacionamento com a morte de outras culturas, havia algo. Agora tornamos a morte tão asséptica, tão impessoal que não há espaço para mais nada. Não nos relacionamos com o processo, com o chorar, com a chegada dos entes queridos.

Não suporto as missas de corpo presente, de sétimo dia ou qualquer outra missa. Criei uma certa aversão depois de 3 anos a ir à missa todos os meses por “ordem” da minha avó materna, quando morresse. E como eu digo sempre: sim fui a missa e iria de novo, não era bom desobedecer à minha avó em vida, quanto mais em morte. Não suporto o coro da: minha culpa, minha tão grande culpa. Mas entendo que é o que ainda resta dos rituais de morte.

Quando a minha avó morreu este verão, fiquei horrorizada com o processo, manhã de velório e início da tarde cremação. As agências funerárias tornaram-se de tal forma eficazes e rápidas, que quase não damos pela morte que chegou. Distanciamo-nos de tal forma do corpo que é terra, planeta que negamos a possibilidade da morte. Mas a razão moderna fala que é mais fácil, melhor, mais limpo. Será? Quanto menos lidarmos com a morte menos lidamos com a nossa própria finitude e podemos viver na doce ilusão de sermos maiores do que a vida. Lidar com a morte é aprender a viver, os cemitérios que nos colocam sem podermos voltar a ser solo fértil, ficamos ali retidos naquele espaço, uns nem no chão ficam. Eu conheço as campas dos meus antepassados, sei onde estão muitos deles, e alguns que nem outros membros da família sabem. Quando o meu pai espantado olhou para mim por eu saber onde era a campa do meu avô eu respondi-lhe: sim sei e vou lá às vezes, o avô morreu quando tinha 17 anos, aprendi a visitá-lo ali.

 

E agora a minha pergunta torna-se mais complexa, se a higienização da morte, se não há rituais de morte, senão podemos voltar ao solo, onde estamos nós?

Para citar este artigo:

TRINCÃO MAIA, Maria. Uma Morte Asseadinha. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-54/uma-morte-asseadinha ,número 54, 2024

E agora a minha pergunta torna-se mais complexa, se a higienização da morte, se não há rituais de morte, senão podemos voltar ao solo, onde estamos nós?

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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