Estórias Simples

Coluna de Patrícia Rosa-Mendes

5 MIN DE LEITURA | Revista 49

A arte perdida de engraxar sapatos

“Somos um, a casa e eu, e eu estou feliz de estar só – tempo para pensar, tempo para ser. Este tipo de tempo aberto é o único luxo que realmente conta, e eu sinto-me estupendamente rica por o ter.” – May Sarton

Um destes dias, abri a caixa de sapatos onde guardo umas botas que uso poucas vezes e encontrei-as cheias de humidade. O primeiro pensamento foi “já estão tão velhinhas, se calhar tenho de comprar outras, estas já não servem mais”. Deixei-o passar, contudo, e trouxe-as para fora para as engraxar. Fui buscar a caixa das graxas à dispensa, e encontrei-a cheia de pó, pois é pouco usada nos últimos tempos.

Desde que o trabalho passou a ser feito de casa, maioritariamente, os sapatos de pele foram substituídos por ténis e botas práticas, ou sandálias de verão. A vida mudou, e com ela as rotinas, as necessidades e os hábitos.

Durante alguns minutos, limpei as botas com a escova, retirando o pó e os pontos de humidade. Depois, coloquei a graxa com o pano, embebendo bem a pele, massajando em círculos. Voltei a pegar na escova e puxei o lustro, com vigor. No final, voltei a passar um pano e deixei-as estar ao ar, a secar, antes de as guardar na caixa, juntamente com algumas bolsas de sílica. Olhei para elas com atenção e percebi como estavam bonitas, quase como novas.

Este pequeno gesto, que me tomou algum tempo – mas não tanto assim – é simbólico de como a vida contemporânea abandonou o hábito de cuidar. Lembro-me que era um gesto comum e recorrente na casa da minha infância, o de engraxar os sapatos sempre que era necessário. Aqui deixo uma pequena nota: minha infância decorreu nos anos 70 do século XX, um contexto que cada vez mais é importante para adultos cujas infâncias aconteceram uma ou duas décadas depois. Cuidar das coisas, que eram adquiridas com esforço e feitas para durar quase toda a vida, constituía uma parte integrante do dia a dia, um tempo importante, que estava incluído no tempo quotidiano. Como tantas outras rotinas e gestos, tenho a sensação de que havia tempo para tudo: trabalhar, descansar, cuidar do estar vivo, sob todas as suas formas; sobrando até pequenos momentos para celebrar e desfrutar. Havia espaços em que o tempo não estava contado, em que se podia parar e estar. O trabalho não ocupava, na íntegra, todo o nosso tempo de vigília, como parece acontecer nos dias de hoje. Apesar de serem décadas já industrializadas, ainda assim o ritmo era mais lento do que este ritmo digitalizado, onde o instantâneo é omnipresente e absorvente. A vida tinha espaço e tempo para acontecer, e era cuidada através das relações que se estabeleciam com tudo o que nos rodeava, mesmo com os objectos, que também tinham as suas almas.

Tenho observado em mim e na minha vida como o tempo cada vez é mais contado, compartimentalizado em tarefas e obrigações, e como cada vez sobra menos tempo, e espaço, para a qualidade de vida. A prevalência e dominância do trabalho sobre todas as outras áreas da vida, seja ela por necessidade, seja por gosto ou por qualquer outra razão, escraviza-nos, limita-nos e diminui-nos. Retira-nos a disponibilidade para as relações. A tragédia é a de que somos seres relacionais, esse é todo o foco dos nossos seres, em todas as áreas e actividades, mesmo as que nos parecem menos prováveis. Quando consumimos algo, é a relação com isso que nos prende, acima do produto ou do resultado em si. Quando trabalhamos, a relação é a base do nosso sucesso. É perfeitamente possível trabalhar toda a vida em algo que se detesta caso exista um ambiente relacional que acolhedor. Por exemplo, as gerações que cresceram no pré-segunda grande guerra, e que passaram por momentos de fome e sobrevivência básica, não estavam geralmente muito preocupadas com a questão de seguir carreiras ou vocações. Sabiam que tinham de ter um trabalho que assegurasse comida e abrigo; afinal, era isso que tinha faltado, e era esse o seu foco. Em alturas em que era comum ter empregos para a vida toda, o que sustentava esses empregos era, frequentemente, a rede de afectos que se estabelecia entre esses grupos de pessoas, autênticas segundas famílias. Hoje, num Norte Global rico e afluente, onde podemos desviar o nosso foco para expressar os nossos dons antes de nos preocuparmos com a sobrevivência, curiosamente não temos empregos para a vida, e podemos ser bastante infelizes a fazer aquilo que escolhemos e de que gostamos verdadeiramente.

Compartimentalizámos tudo e todos, achando que a vida é uma estrutura Lego à qual vamos retirando e juntando peças, e este olhar mecanicista gera a desconexão. De repente, os objectos são apenas coisas, que são usados e deitados fora (até porque afinal, há sempre mais objectos novos, prontos a serem comprados). E, quando damos conta, tudo o resto na nossa vida é tratado de forma descartável: se não me serve, se não me acrescenta, se implica investir esforço e tempo, se pressupõe esperar, então não me interessa e pode ser deitado fora. Mas, quando me posiciono assim na vida – quando vivo desde este lugar – na verdade eu não estou inteiramente viva. Eu vivo uma existência anti vida.

Vida é relação. E relação é cuidado. Quando olho para os últimos anos da minha vida, dou-me conta como o meu tempo contado tem sido esbanjado em frente a ecrãs.

A correria constante de uma coisa para a outra, ou de várias a acontecer ao mesmo tempo, das expectativas e do cumprir com tudo o que tem de ser feito, deixa-me esgotada ao final do dia, desejando apenas um novo ecrã onde possa deixar o olhar cair e tornar-me dormente. Deixou de haver separação entre mundos porque sair da cadeira do computador para entrar na cozinha significa continuar a trabalhar. Mesmo aquilo que amo fazer, ou que me conecta, verdadeiramente, à vida, é feito quase sempre desde um lugar de obrigação, onde tento fazer malabarismo com muitas bolas para que não se estatelem no chão, derrubando toda a periclitante organização quotidiana. Fazer coisas – seja trabalho, seja lazer – é também um acto de relação. Porém, a distorção que o tempo tem vindo a sofrer tem cortado esse laço. Inundados de exigências e sem tempo, pressionados pelas circunstâncias socio económicas, e cada vez mais dissociados da realidade, vamos deixando de saber estar em relação: uns com os outros, com o que fazemos, connosco mesmos.

A realidade é que estar vivo acontece numa teia relacional, e isso implica, necessariamente, cuidado: o tipo de cuidado que nos leva a sentar e a cozer um buraco numa camisola ou numa meia. O tipo de cuidado que nos leva a consertar um objecto partido, ou a engraxar as botas velhas. A observar aquela planta cujas folhas têm vindo a amarelecer para tentar compreender de que necessita ela. A parar para telefonar aquele amigo ou familiar de quem se gosta tanto, e escutá-lo, verdadeiramente. O tipo de cuidado que inclui o caminhar pelo lugar onde se vive olhando com atenção, descobrindo que vidas existem aí, e como é que elas acontecem. O tipo de cuidado que surge, naturalmente, do ritmo orgânico dos nossos corpos, das suas necessidades e das suas vontades simples, escutadas e atendidas. E que pode então abrir-nos aos Outros.

Esta é a bênção escondida do Inverno, que convida a parar e a redescobrir o ritmo que é o nosso. No meio da chuva, do frio e do vento surge um espaço que poderá esvaziar-nos.  Invernar pode ser uma das chaves para recuperar a sabedoria animal da relação. Sinto que a transformação que é imprescindível à nossa sobrevivência passa por este resgate, e pelo compromisso imenso do cuidar.  Precisamos de resgatar a arte de engraxar sapatos.

Para citar este artigo:

ROSA-MENDES, Patrícia. A arte perdida de engraxar sapatos. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-49/a-arte-perdida-de-engraxar-sapatos/, número 49, 2024

Esta é a bênção escondida do Inverno, que convida a parar e a redescobrir o ritmo que é o nosso. No meio da chuva, do frio e do vento surge um espaço que poderá esvaziar-nos.  Invernar pode ser uma das chaves para recuperar a sabedoria animal da relação. Sinto que a transformação que é imprescindível à nossa sobrevivência passa por este resgate, e pelo compromisso imenso do cuidar.  Precisamos de resgatar a arte de engraxar sapatos.

Patrícia Rosa-Mendes

Patrícia Rosa-Mendes

Terapeuta Transpessoal

Instrutora de Meditação
Formadora na EDT – Escola Transpessoal
Tradutora
Contadora de Estórias
Mitologia – Arte – Eco-psicologia

Patricia.mendes@escolatranspessoal.com