artigo de Maria Trincão Maia

The Good Place

5 MIN DE LEITURA | Revista 58

The Good Place (de Michael Schur) mistura filosofia, moral e ética — uma combinação que pode parecer insólita para uma sitcom. Esta junção resulta e levanta várias questões interessantes, como o absolutismo irreal da visão binária do bom e do mau, põe nos em contacto com interdependências invisíveis na nossa existência.

De forma muito simplificada, a série retrata a jornada de quatro humanos: Eleanor Shellstrop, Chidi Anagonye, Tahani Al-Jamil, Jason Mendoza, de um demónio Michael e de uma inteligência absoluta e omnisciente representada num corpo feminino, capaz de teletransporte, de se transfigurar (entre outras habilidades), chamada Janet. Com ajuda destes personagens e outros, o espectador é encaminhado por questões morais e éticas sobre o paraíso, o inferno e a vida na terra.

Por mais inusitada que seja a série, ela ainda opera dentro da imaginação limitada de uma visão euro-americana sobre o mundo. O sistema de pontuação altamente burocrático mantém a visão cristã de ações e recompensas, bem e mal, operando como uma contabilidade moral. A Juíza, símbolo da suposta neutralidade, assume o papel de criadora e destruidora de universos. Para manter a neutralidade a Juíza ignorar a humanidade, porém assiste a séries compulsivamente.

No episódio 9 da terceira temporada, lançada em 2018, o que se prevê que o ano na série será o mesmo visto que a trama acompanha a realidade da sua altura de exibição, revela-nos, num diálogo entre Michael e Neil,-o chefe da contabilidade,- que o último humano a ir para o Lugar Bom foi há 521anos.

Michael: Quando foi a última vez que alguém conseguiu entrar?

Neil: A última vez que alguém acumulou pontos suficientes para entrar no Good Place foi… há 521 anos.

 

Com isto pretendo que se atente ao seguinte: o último humano que entra no Good Place foi há 521 anos, se tivermos em conta que o ano em que aquele episódio se passa é 2018. Fazendo a conta, o último humano a entrar foi em 1497. Este ano tem duas efemérides interessantes:

  1. Giovanni Caboto (depois conhecido por Jonh Cabot) parte de Bristol a 2 de Maio, com destino à Ásia, contudo desembarca na ilha de Terra Nova e Labrador (Canadá) a 24 de Junho. Sendo, que se saiba, os primeiros europeus depois dos Vikings a irem à América do Norte.
  2. Vasco da Gama sai de Lisboa, a 8 de Julho de 1497 a mando de D. Manuel I para encontrar a rota marítima para Índia, chega ao destino em 1948, a Calecute na Índia.

Estas duas expedições iniciam assim a colonização pelos europeus dos territórios da América, África e Ásia. Como Quijano argumenta, a colonialidade não é apenas uma estrutura do passado — ela é a lógica que organiza o presente. E, como Mignolo alerta, a modernidade nunca existiu sem o seu lado sombrio: o colonialismo. Claro que isto mostra uma visão completamente absolutista de como a visão ocidental vê o mundo. Reduzimos o resto do mundo à nossa própria visão, limitando o que existe apenas à nossa compreensão do que é o mundo.

No episódio 10 da mesma temporada Michael em conversa com Tahani compreendo o erro no sistema.

Tahani: Estou a tentar ajudar o Jason e a Janet a lidar com sentimentos muito complexos, mas tudo o que faço só piora as coisas.
Conhece-los melhor do que ninguém.
Como é que eu os faço felizes? Como é que tu fazes o Jason feliz?

Michael: Dás-lhe um chupa-chupa em forma de Transformer.

Tahani: Podia pensar-se que era assim tão simples.
Mas sempre que faço algo de bom, tem o efeito contrário.
Há tantas consequências inesperadas para ações bem-intencionadas.
Parece um jogo impossível de ganhar.

Michael: É isso.
Há outra explicação: consequências inesperadas.
Oh, Tahani, tu conseguiste.

Tahani: Bem, claro que sim, querido.
Fiz o quê?

Michael: Durante todo este tempo, só estive a olhar para um Doug, mas há milhões de Dougs aqui dentro.

Em 1534, Douglass Wynegar, de Hawkhurst, Inglaterra, deu rosas à avó no seu aniversário.
Colheu-as ele próprio, levou-as até ela, ela ficou feliz – boom, 145 pontos.

Agora… aqui vamos nós.

Em 2009, Doug Ewing, de Scaggsville, Maryland, também deu à sua avó uma dúzia de rosas, mas perdeu quatro pontos.

Porquê?
Porque encomendou as rosas usando um telemóvel que foi fabricado numa sweatshop.
As flores foram cultivadas com pesticidas tóxicos, colhidas por trabalhadores migrantes explorados, transportadas milhares de quilómetros, criando uma enorme pegada de carbono, e o seu dinheiro foi para um CEO bilionário racista que envia fotos dos seus genitais às empregadas.

 

Regressemos a esta ideia: a modernidade assenta sobre a colonização.

Pode parece uma frase simples e rapidamente a mente europeia pode dizer: houve sempre colonizações por isso é normal.

De facto, houve sempre colonização, porém esta é tão recente, tão perto, tão bélica. As marcas encontram-se ainda hoje. Foram mortas milhões de pessoas, no oceano Atlântico jazem milhões de corpos de pessoas escravizadas. Porque se os espanhóis aniquilaram o império azteca, nós portugueses comercializamos milhões de pessoas como se fossem mercadorias. E esta verdade doí. Mas é nesta história que assenta as raízes do “avanço civilizacional” da europa. Avanço este que tem um custo, um preço.

A diferença entre oferecer uma rosa à avó, antes e agora, é a forma como o mundo está organizado. Como a globalização, em paralelo com o consumismo, tornou a nossa existência numa rede de sofrimentos em que nos mantemos alienados. O vazio que preenchemos a qualquer custo, o vazio da dizimação das nossas paisagens, os uivos de dor que não reconhecemos são abafados por dores que não vimos. E a resposta é rápida na defesa, o ataque: então, mas tu usas telemóvel, usas roupa, segundo o que dizes o melhor é viver off grid.

O purismo das respostas rápidas para fugirmos de tocar na dor. O mecanismo binário para desativar o pensamento crítico. Assim não tocamos em nada, acabasse a conversa, fecha-se o diálogo. Mas vamos ficar aqui, vamos deixar que entre esse desconforto, essa dor, vamos convidá-lo a sentar-se connosco. Vamos reconhecer-lhes os rostos, as teias entre humanos e não humanos. Vamos honrar a vida de tudo o que foi sacrificado para nós estarmos no quente de uma sala confortável. É caro, bem mais que o preço que vimos no talão de compra. Esse é a parte mais barata. Voltemos a conclusão de Michael, que embora seja por si muito interessante, é apenas uma fracção da teia, um pouco. Porque as ramificações estendem-se no espaço e no tempo. Para frente e para trás.

Porque encomendou as rosas usando um telemóvel que foi fabricado numa sweatshop.

Sweatshop é o nome dado a locais de trabalho com condições precárias, mal pagas, podendo haver trabalho infantil. E as tarefas são por norma perigosas pelos componentes dos produtos fabricados. Quantos sonhos morreram ou nem existiram nesses locais? E aqui estamos só na parte humana. Quanta terra não foi esventrada para conseguir o lítio, quantas crianças não morreram? Quantos animais ficaram sem habitat, quantos morrem pelo caminho. Quantas árvores e plantas foram arrancadas?

A dureza destas perguntas, apenas numa só frase é a parca discrição dos nossos sistemas modernos. É assustador eu sei. Tão assustador que nem consigo ter espaço para descrever o resto das frases. Vamos ficar aqui, apenas nesta. Por hora chega, porque a dor é imensa. Mas vamos um pouco mais longe, vamos sair do sistema binário bom-mau, certo-errado. Porque assim, como na série, seremos todos considerados maus. E efetivamente não somos todos maus, nem bons, somos produto de vários sistemas. No entanto, não podemos continuar a dissociarmo-nos das cadeias de dor e sofrimento que existem, nem as nossas nem as dos outros. Porque não existe nós e os outros, existimos todos, não somos todos um, mas somos todos muitos, uns individuais que se tornam coletivos, porque como Sofia Batalha me lembra sempre: somos seres gregários precisamos uns dos outros.

Se tudo o que imaginamos nasce do que conhecemos, como podemos aprender a escutar para além da nossa cultura? Como podemos imaginar novos mundos?

Para citar este artigo:

MAIA, Maria Trincão. The Good Place. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-58/the-good-place/, número 58, 2025;

Por mais inusitada que seja a série, ela ainda opera dentro da imaginação limitada de uma visão euro-americana sobre o mundo. O sistema de pontuação altamente burocrático mantém a visão cristã de ações e recompensas, bem e mal, operando como uma contabilidade moral. A Juíza, símbolo da suposta neutralidade, assume o papel de criadora e destruidora de universos. Para manter a neutralidade a Juíza ignorar a humanidade, porém assiste a séries compulsivamente.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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