
Um Falcão Peregrino À Janela
Coluna de Ana Alpande
3 MIN DE LEITURA | Revista 58
Sexta Semana De Inverno
Está frio, mesmo frio. Saímos de casa às 7 horas da manhã rumo ao CISE – Centro de Interpretação da Serra da Estrela – ponto de encontro de uma saída de campo para observar aves invernantes. Prontamente avançamos para os carros sem saber muito bem o que esperar na montanha, temos esta janela de oportunidade única, a festa das candeias aproxima-se e é possível que as aves, que escolhem o nosso país para fugir às agruras dos polos, comecem a mover-se em breve, já que a candelária anuncia o despertar deste fogo firme que pulsa debaixo dos nossos pés.
Mas hoje? Hoje o único fogo a que tenho acesso é o das garrafas térmicas, uma com chá e outra pequena com café, para me aguentar durante o dia com temperaturas e condições atmosféricas bastante agrestes. As previsões são de tempestade, os alertas bipam no telemóvel com avisos da proteção civil para ter cuidado e evitar sair de casa. O grupo nomeia um membro para acompanhar as previsões do IPMA para a Torre, hora a hora. Sabemos que temos pouco tempo para conseguir observar qualquer coisa, a espectativa é encontrar uma Estrelinha-de-poupa (Regulus regulus) espécie invernante muito difícil de ver, sabe-se que a Serra da Estrela é o local do país onde há mais probabilidade de as avistar.
Paramos no Vale do Rossim, no verão é uma praia fluvial cheia de gentes, com as suas músicas, lancheiras, caiaques e colchões insufláveis. Hoje não há pessoas, nem se ouvem pássaros, só o vento que ruge violento como se destilasse toda a indignação contra os penedos impávidos, gigantes que absorvem a raiva sem se queixar ou mover. Caso fosse possível aguentar a temperatura sem gorro provavelmente os cabelos estariam a chicotear-me a face, mas não dá para estar aqui sem gorro e já me arrependo amargamente de não ter trazido as luvas térmicas, optei pelas que tricotei para o meu filho tocar piano, aqui de pouco servem, sinto os dedos congelados e doí segurar nos binóculos.
Começo a pensar que foi loucura ter saído de casa para observar pássaros com este tempo, não consigo ouvir nada mais que o vento, até as vozes dos meus companheiros ficam esbatidas e perdidas no nevoeiro que desce sob o vale. Como é que vamos ver ou ouvir o que quer que seja nestas condições?
As lágrimas escorrem-me dos olhos e fazem com o que o foco seja difuso. Nada está a ajudar a observação de pássaros hoje, todas as esperanças voltam-se para as Penhas, quando chegarmos ao bosque de coníferas, as árvores serão o escudo firme que irá proteger-nos do vento. Antes de dar meia-volta para os carros alguém avista um Corvo-marinho, (Phalacrocorax carbo), junto à margem do lago. Logo posicionam-se telescópios, todos espreitam maravilhados, olho só para me orientar em termos de direção e agarro os meus binóculos, não são tão bons como um telescópio mas são o prolongamento natural dos meus olhos, estou habituada a eles. Limpo as lágrimas e foco a lente, lá está ele, o vento sacode-lhe as penas, sem binóculos seria provável confundi-lo com um arbusto, não posso deixar de me espantar como é que umas pernas tão finas e patas tão curtas conseguem implantá-lo no solo, quanto o vento testa a gravidade de todos nós. A visão deste pequeno corpo hirto causa-me grande impacto.
A semana passada vi na televisão a tomada de posse do novo presidente norte americano. Fui açoitada pelo vento da indignação e o calor da raiva, ao ver todos os multimilionários que controlam o mundo tecnológico sustentarem-lhe as costas. Uma fila de miúdos que cresceram em caves, que provavelmente jamais se levantariam da cama às 6 da manhã, num dia de inverno com uma previsão atmosférica adversa para fazer 50km, subir à montanha com o risco de lá ficarem presos, para avistar criaturas que podem ou não querer mostrar-se.
Jamais entenderei o que move estas pessoas e provavelmente estas pessoas jamais entenderão o que me move.
Assusta-me o poder condensado desta maneira nas mãos de tão poucos, ao mesmo tempo sei que a tomada de posse do presidente constelou uma série de arquétipos que ficaram bem visíveis, o futuro e o passado que tanto queremos negar, ali juntos, qual ouroborus distorcido, mordendo a própria cauda, numa repetição assustadora da sombra da nossa história. Aguardo com esperança e desesperança as interrupções e disrupções na matrix, tenho medo mas também percebo curiosidade, quando vejo o lago e o vento sinto confiança no caos, percebo no comportamento do corvo algo que reverbera com a minha coluna. Tenho de confiar mais no chão.
No grupo alguém comenta que já avistou um Corvo-marinho junto à lagoa coberto de gelo. Um dos biólogos começa a falar de filogenia e outras coisas que me parecem importantes e interessantes mas que não registo, neste momento vejo o corvo e não consigo parar de pensar que há algo ali que desejo ardentemente trazer comigo e que não é informação científica, agora sou a aluna, o corvo é o mestre e com o meu pensamento simbólico imagino-o a transmitir-me algo, no silencio leitoso do ar gelado, algo que é para a vida.
Um totem para este futuro colapsado o qual todos aprendemos a temer e fugir. Ao Corvo-mestre a minha grande gratidão, valeu a pena!
Para citar este artigo:
ALPANDE, Ana. Terceira Semana de Inverno. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/terceira-semana-de-inverno/, número 57, 2025
A semana passada vi na televisão a tomada de posse do novo presidente norte americano. Fui açoitada pelo vento da indignação e o calor da raiva, ao ver todos os multimilionários que controlam o mundo tecnológico sustentarem-lhe as costas. Uma fila de miúdos que cresceram em caves, que provavelmente jamais se levantariam da cama às 6 da manhã, num dia de inverno com uma previsão atmosférica adversa para fazer 50km, subir à montanha com o risco de lá ficarem presos, para avistar criaturas que podem ou não querer mostrar-se.

Ana Alpande
Colunista e Autora regular da Revista
Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias
A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.
Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.
O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.