
Biografia dos Dias sem Princípio
Coluna de Inês Peceguina
3 MIN DE LEITURA | Revista 58
Precisaremos ainda de um corpo?
[parte I] parteII [parte III]
No seu livro O aroma do tempo, Han (2009, p. 53), que aqui se debruça, em particular, sobre o tempo e a temporalidade, refere: “A aceleração acarreta um empobrecimento semântico do mundo. (…) Tudo o que não se pode fazer presente não existe. Tudo tem de estar presente.”
Apesar de, com regularidade, me dedicar à observação de padrões, repetições, tendências, sobre as quais foram antes desenhadas hipóteses sobre diferenças estatisticamente significativas, que resultam de experiências significativamente diferentes, assumindo que a diferença é tão grande ou tão profunda que a balança da matemática consegue pesá-la em comportamento e emoções, apesar disso, escrevia, na realidade, mesmo que cada pessoa se possa situar algures numa curva de distribuição normal, mesmo que seja possível identificar semelhanças que a aproximam de uma certa tipologia de pessoa, apesar disso, escrevia, há nuances, singularidades, e a história de cada um é única e irrepetível.
Porque cada um existe sempre na relação complexa com tudo, tudo, mesmo tudo o que existe no(s) seu(s) lugare(s). O impacto desses lugares, imagino-o como a ondulação que se propaga em círculos, quando uma pedra é atirada à água. A perturbação causada pelo impacto dilata-se com o passar do tempo, distanciando-se. À semelhança, quanto mais perto do epicentro, maior o impacto estimado que as experiência podem ter num organismo. E esse impacto, a sua dimensão e extensão, não se medem apenas pela profundidade de cada experiência, de cada relação e interação, mas também a partir da repetição de experiências de “baixa intensidade”.
Água mole em pedra dura.
Aquelas coisas que se vão constituindo como paisagens acústicas do nosso crescimento. Sendo a família nuclear, maioritariamente, a estrutura primeira e primária cujo efeito tende a ser maior, em particular durante os primeiros anos de vida, mas não apenas.
Deixas cair tudo… estás sempre no mundo da lua… és muito inteligente… gorda/o.
Nada que faça desabar de uma vez só, nada que faça jubilar de uma vez só, mas que ao longo do tempo, muito tempo, tempo continuado, sem contraponto, entra para dentro da pessoa.
Internaliza-se.
Apropria-se.
A recorrência das respostas e das interações que temos com os contextos mais próximos, e os objetos humanos e não humanos que fazem parte desse contexto, vai definindo uma certa forma de ver o mundo e de nos vermos, a nós, no mundo. Passam a configurar o desenho e a forma como nos desenhamos, como nos projetamos para fora. A partir de um certo momento, já sem a “ajuda” do exterior.
Sempre uma forma de adaptação ao diálogo dentro-fora-dentro-fora-dentro- .
Incessante.
A adaptação é um escudo. Ajuda a atravessar com menos dor. O problema das adaptações é que, às vezes, mesmo na ausência da ameaça, permanecem ativas. E os escudos, quando não são necessários, pesam muito. Interferem e impossibilitam a compreensão de outras possibilidades de existência.
Tenho pensado nos meus alunos. Pessoas ainda muito jovens. Mal adultos.
Tenho pensado nas pessoas com quem me cruzo nos transportes públicos. Algumas que já reconheço.
Repetição.
As pessoas com quem me cruzo no trânsito. Uma ode à hostilidade.
Tenho pensado no tempo e na aceleração do tempo.
E na crescente dificuldade que tantas pessoas parecem ter em compreender que existe um mundo e um (vários) outro(s) fora de si. E que o que está fora de nós, às vezes, precisa de um certo tempo para ser visto, ouvido, sentido.
Penso na ausência qua a presença continua do acesso ao mundo, através das tecnologias, traz. Ou parece trazer.
Não é exatamente, não necessariamente, acesso à informação. É o acesso só. Acesso a conteúdos. Progressivamente mais condensados para reunir apenas o que não precisa de digestão. Como o açúcar. Um pico de interesse. Que logo a seguir se esvazia, solicitando novo prazer imediato. Um espécie de processo de Bolonha aplicado ao mundo em geral. Eliminam-se as disciplinas teóricas, a história, a antropologia filosófica.
As coisas que precisam tempo e que se demoram a fazer compreender.
Anos, às vezes.
A aceleração leva-nos instantaneamente a todos os lugares. Em teoria. E, ao mesmo tempo, retira-nos do único lugar onde existimos de facto. Que é o lugar onde estamos. Agora mesmo.
Um corpo. Um corpo no espaço e no tempo.
O corpo, também, diria, deixa de estar presente. Ali. Não existe, ali. E como os lugares para onde a atenção se desvia também não existem de facto, com corporeidade, é como se o corpo cessasse de existir.
Não cabemos todos cabem dentro das mesmas categorias. Nem me parece que, no geral, as pessoas mais novas tenham empobrecido em termos de conteúdo interno. Não é uma questão, só, de idade. Mas é naturalmente mais suave que esse estado de impermanência no corpo e nos lugares reais onde o corpo se movimenta, se possa desenvolver mais agilmente nos organismos com menos tempo de existência. Por causa da falta de relevância e de experiência de outras formas de relação. Pela ausência de contraponto. De negativo.
Se enquanto a criança esteve no baloiço, ou a adormecer, o seu cuidador ou cuidadora teve à sua frente um ecrã, mesmo que estivesse numa qualquer atividade erudita, na prática, não esteve presente. Se em qualquer situação social o ecrã ocupa o centro da atenção, então não existe realmente social, não entre as pessoas que ali estão. Porque não estão, realmente, ali.
Para citar este artigo:
PECEGUINA, Inês. Precisaremos ainda de um corpo? – parte II. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-58/precisaremos-ainda-de-um-corpo/ , número 58, 2025
Não cabemos todos cabem dentro das mesmas categorias. Nem me parece que, no geral, as pessoas mais novas tenham empobrecido em termos de conteúdo interno. Não é uma questão, só, de idade. Mas é naturalmente mais suave que esse estado de impermanência no corpo e nos lugares reais onde o corpo se movimenta, se possa desenvolver mais agilmente nos organismos com menos tempo de existência. Por causa da falta de relevância e de experiência de outras formas de relação. Pela ausência de contraponto. De negativo.

Inês Peceguina
PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação
Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.