
A Casa Da Floresta
Coluna de Élia Gonçalves e Patrícia Rosa-Mendes
4 MIN DE LEITURA | Revista 58
Pelas Águas – Ostara
“Fez Deus uma pequena Genciana
Que tentou – ser uma Rosa –
E fracassou – e riu todo o Verão – “
Emily Dickinson – Herbarium (Tradução Ana Luísa Amaral)
Pelas águas, pelos ventos, pela força de vida que pulsa em cada célula, irrompe já a Primavera, renascimento de tudo o que está vivo, do chão ao topo das grandes montanhas, das andorinhas que regressam, às correntes internas do corpo animal que também somos.
Sente-se. Na luz, nos seus cambiantes e intensidade, nos cheiros que por vezes chegam levados pelo vento, na pele, que ora está dormente e adormecida, ora vibra como que desperta. Tudo acorda do sono do Inverno. Ainda que por vezes, às custas de alguma força escondida, resgatada para conseguir quebrar as cascas endurecidas pela espera e chegar até à superfície. Mas, quem disse que renascer é fácil?
Renascer, viver, morrer… todo o ciclo de existência e experiência de tudo o que existe neste nosso planeta-milagre, nesta intrincada rede de sistemas e conexões que nos é invisível, não é fácil. Exige uma força constante de vontade, de persistir e de resistir. De querer viver. Confrontada com a minha própria resistência, com as tristezas internas que têm emergido, como águas subterrâneas empurradas por enchentes invisíveis, com a minha autocomiseração, tenho reflectido o quão distinto é este impulso de vida e esta resiliência daquilo que é ensinado na nossa cultura moderna, e do que eu própria tenho vivido conscientemente.
Entre o que sou e o que fui ensinada a ser. Entre aquilo que trago em termos de biologia e também em termos de sistemas, familiar e cultural, e o que tenho vindo a construir eu mesma, sinto um imenso emaranhado que dificulta a lucidez e entrava a ideia moderna de que posso escolher quem sou, deitando fora determinados traços, escolhendo outros e alcançando um qualquer ideal perfeito de ser humano, de ser mulher.
Sublinho o “ser mulher”, porque é uma realidade muito diferente da de se ser homem, e também da de se ser não-binário. Não sei o que é ser não-binário, e não sei o que é ser homem, mas sei que ser mulher não é fácil, mesmo num canto do mundo onde há mais escolhas e direitos de que em muitos, muitos outros. E não é fácil desde há milénios: de tempos a tempos há ciclos onde se torna mais equilibrado, onde a dignidade ganha mais espaço, mas invariavelmente seguem-se outros ciclos onde se perde tudo outra vez. Ciclos de vida, morte e renascimento, uns atrás dos outros. Ciclos em que os direitos conquistados cobraram o preço de milhares de vidas, de sofrimentos profundos, de torturas explícitas ou sub-reptícias, de vidas sem voz, em servidão.
Não deixo de fazer uma associação entre as mulheres e o mundo natural, com tudo o que isso traz de positivo e de negativo, com tudo o que isso permite de reparação e de continuidade da subjugação. No paradigma humano que se foi construindo desde há cinco ou seis milénios atrás, há uma ideia prevalecente e basilar, a de que existem os mais fortes e os mais fracos, e que os mais fortes têm o direito de subjugar, explorar, dominar os mais fracos. Aliás, de que estes “mais fracos” existem precisamente para servir esses “mais fortes”. Toda a nossa forma de estar e de viver é esta: em todas as áreas da nossa vida, em todas as relações que temos, exercemos esta ideia-base e lutamos por estar do lado dos “mais fortes” e não ser dominados. Quando o conseguimos, seja por que meio for – dinheiro, estatuto, educação – sentimo-nos poderosos e protegidos. Enquanto mulheres, o esforço para alcançar estes lugares de poder tem sido muito maior do que enquanto homens, porque nascemos com um handicap fundamental: ser mulher.
Ainda assim, enquanto humanos, todos beneficiamos do lugar de poder da espécie, e consideramo-nos “mais fortes”, não tanto em força, mais em inteligência, uma capacidade que, até há pouco tempo, era definida apenas pelas características do hemisfério esquerdo, da razão e da lógica. Curiosamente, são também as características associadas ao género masculino, e aquelas às quais tentamos dar primazia, acreditando que as outras nos tornam inferiores, são um lapso evolutivo e deveriam existir apenas em pano de fundo, no reino da intimidade. Refiro-me a todas as competências geridas pelo hemisfério direito, e que nos permitem, entre outras coisas, integrar sentimentos, reconhecer, apreciar e interpretar imagens, expressões faciais, sons, expressar e gerar estados de ser, ser tocado pela Beleza, pelo Mistério, ter fé e esperança…
Muitas delas são atribuídas ao feminino como sendo inatas ou muito presentes nas mulheres. Acredito que algumas delas também sejam sentidas por outros seres vivos, animais ou plantas. Sabemos que ambos apreciam música, sentem emoções e reconhecem expressões de amor ou de raiva. E também isso é inteligência.
Contudo, nenhuma delas é um lapso evolutivo ou uma fraqueza. Pelo contrário, têm permitido que a vida continue, floresça, prospere e renasça, depois das inevitáveis mortes. É que, ao contrário da nossa percepção, a vida inclui situações e momentos de competição, mas é essencialmente cooperação e entre-ajuda. É uma teia de relações.
Sublinho relação como a palavra-chave. Também ela uma palavra associada ao feminino, um estado que parece ser menos importante do que o alcançar de metas e objectivos ou apenas um meio para o conseguir. Ainda assim, relação é aquilo que fazemos ao estar vivos: respirando, comendo, reproduzindo-nos, descansando, amando, criando… tudo é relação, com seres ou conceitos. Tudo são sistemas dentro de sistemas, relações dentro de relações. Percursos labirínticos que vamos percorrendo, com mais ou menos livre-arbítrio, em movimentos mais expansivos ou retractivos, servindo a Vida, com mais ou menos consciência. Em última análise, todos acabaremos por servir a Vida ao morrer e tornarmo-nos material em decomposição, o adubo da próxima primavera.
E de que me serve toda esta filosofia? Talvez para pôr em causa a arrogância que me foi ensinada e que trago em mim.
Tem-me servido para ir mais fundo no meu processo pessoal, e compreender o quanto da minha vida não me pertence, por muito que eu queira mudá-la ou mudar-me a mim. O que sou, o que tenho sido e o que me tem tocado viver é muito mais amplo e invisível do que o meu ego gostaria, e ir honrando e aceitando a minha mágoa por isso, bem como a minha compreensão, facilita-me mais do que imagino e traz mais chão e mais relação ao viver.
Tem-me servido para observar os meus lugares mais imaturos e narcísicos que me retiram do meu verdadeiro lugar na teia em busca de um reconhecimento pessoal. Afinal, se uma árvore suporta ventos e tempestades, é porque o clima está contra ela, ou porque ela errou nalguma parte do seu ser? Não é sobre mim; talvez nem a minha existência pessoal seja totalmente sobre mim…!
Tem-me servido para compreender que a experiência humana implica uma constante defesa dos valores de dignidade, tolerância, compaixão, verdade e justiça, pois eles nunca são garantidos. Valores que se aplicam entre seres humanos, na sua imensa e salutar diversidade, e também se podem e devem estender aos parentes mais-que-humanos com que nos relacionamos neste extraordinário lugar que habitamos. E isso implica essa luta persistente e essa vontade de viver, de se expressar enquanto ser único, irrepetível e absolutamente merecedor. E isto, para mim, é hoje a verdadeira força e o verdadeiro poder.
Para citar este artigo:
GONÇALVES, Élia; ROSA-MENDES, Patrícia. Pelas Águas – Ostara. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-58/pelas-aguas-ostara/, número 58, 2025;
Muitas delas são atribuídas ao feminino como sendo inatas ou muito presentes nas mulheres. Acredito que algumas delas também sejam sentidas por outros seres vivos, animais ou plantas. Sabemos que ambos apreciam música, sentem emoções e reconhecem expressões de amor ou de raiva. E também isso é inteligência.
Contudo, nenhuma delas é um lapso evolutivo ou uma fraqueza. Pelo contrário, têm permitido que a vida continue, floresça, prospere e renasça, depois das inevitáveis mortes. É que, ao contrário da nossa percepção, a vida inclui situações e momentos de competição, mas é essencialmente cooperação e entre-ajuda. É uma teia de relações.

Patrícia Rosa-Mendes
Terapeuta Transpessoal
Instrutora de Meditação
Formadora na EDT – Escola Transpessoal
Tradutora
Contadora de Estórias
Mitologia – Arte – Eco-psicologia
Autora do Livro A Loba à Espera.

Élia Gonçalves
Colunista e Autora regular da Revista
Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal
Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia
elia.gonçalves@escolatranspessoal.com