O Cântico dos Cânticos

Coluna de Amala Oliveira

3 MIN DE LEITURA | Revista 57

A Vida da Efémera

Viajo num comboio regional de um vagão só. Viver no Portugal profundo tem este charme. É sexta feira e a carruagem vai cheia de gente, muitos jovens universitários no regresso a casa. Ao meu lado senta-se um rapaz, comunicação abreviada de quem coloca as malas junto um do outro, troca furtiva de olhares, acomodação de espaços.

Em breve surge o revisor e, no meio da espera do mostrar os bilhetes, trocamos um olhar mais demorado, sustido e mantido o suficiente para marcar uma presença, uma afirmação. Olhar bonito e altivo, com a coragem e confiança viril que só a mancebia concede. Ah a juventude!

Eu, do lado da janela, observo a paisagem que passa enquanto decido qual a playlist mais adequada aos humores do momento, muito cinzentos por sinal. Da mala tiro o meu livro. Ele, tira um caderno e começa a desenhar. Sei que, de alguma forma, é para me impressionar. Faço questão de olhar, apenas o tempo suficiente para que se sinta reconhecido. As micro seduções que se tecem nas comunicações silenciosas anónimas.

De tempos a tempos olha-me, vejo-o pelo canto do olho, e sorrio discretamente. Volto a olhar para o seu desenho, depois para o meu livro. Sinto-me honrada e algo comovida. Afinal, o jovem deve ser pouco mais velho do que o meu filho e a mulher madura que sou não deixa de se sentir lisonjeada com o discreto flirt.

Lembro-me de ser jovem e estar na mesma situação, buscando reconhecimento da pretensa beleza e  poder feminino na Lolita ingénua que era. A alegre arrogância da imaturidade!

Dizia Baudelaire que a juventude se desperdiça nos jovens. Não concordo que se desperdice, todos os ciclos têm os seus encantos e desencantos particulares e seguramente eu não quereria voltar a ter 20 anos, mas que há graças especiais dessa época de que tenho saudades, isso há.

Observo a paisagem que passa e recordo as grandes crises existenciais da adolescência e as dores profundas do adultezar de mim menina. A dificuldade em fazer caber uma bomba atómica de hormonas poderosas num corpo bailarino e sexualmente disponível ao navegar os mares de fantasias, perigos, condenações e experiências. Algumas delas traumáticas.

Observo cada menina-mulher nesta carruagem e encontro as mesmas inadequações, os mesmos encolheres de corpo na tentativa de passar despercebida ou na afirmação de aparecer. E em 30 anos parece que nada mudou… E o que mudou, temo que tenha sido para pior…

Sinto-me muito velha às vezes, velha do Restelo, quase.

Entretanto, numa das paragens, entra uma rapariga que se senta próximo a nós e observo as flutuações de atenção, o óbvio e inevitável direccionamento da energia de sedução, que encontra um novo alvo – sendo ou não sendo bem vinda a imposição dessa mira.

A sociedade machista e patriarcal impõe regras desiguais a homens e mulheres, especialmente quando se trata da liberdade de expressão da sexualidade e da sedução. Desde cedo, as raparigas são educadas a serem discretas, a temer julgamentos e a carregar o peso da sua própria segurança. Já os rapazes são incentivados a explorar, a conquistar e, muitas vezes, a tratar o desejo como um símbolo de poder.

Esta disparidade cria um ambiente de opressão psicológica para as jovens mulheres com repercussões para a vida toda. Enquanto um rapaz que seduz é visto como confiante e másculo, uma rapariga que se atreva a fazer o mesmo pode ser rotulada de imprudente, irresponsável ou promíscua. Esta diferença de julgamento não é apenas injusta mas também cruel, pois força as mulheres a reprimirem desejos naturais por medo das consequências.

Os perigos para uma jovem mulher são muitos e muito reais. Além do assédio e da violência, há a constante ameaça da descredibilização: se algo lhe acontece, a sociedade tende a questionar a sua roupa, a sua atitude, as suas intenções em vez de responsabilizar o agressor. Esse peso psicológico gera insegurança, ansiedade e uma sensação de culpa que não deveria existir.

Viver num mundo onde a liberdade é selectiva e onde o medo molda comportamentos significa crescer com uma percepção distorcida do próprio valor. Muitas mulheres passam a duvidar de si mesmas, a evitar situações que poderiam ser prazerosas e a carregar um fardo emocional desnecessário que pode bloquear o corpo e até a vida toda. O impacto psicológico do machismo não é apenas um obstáculo social, mas um entrave ao bem-estar e à liberdade feminina.

Observo os recentes movimentos políticos, as agendas, o retirar direitos que nós mulheres considerávamos adquiridos, num retroceder ao obscurantismo. E convoco as mulheres e os reais amigos das mulheres. O caminho para a mudança exige mais do que apenas discursos; requer uma desconstrução diária de normas ultrapassadas e a criação de um espaço onde as mulheres possam existir sem medo. Não se trata de querer privilégios, mas de exigir aquilo que sempre deveria ter sido garantido: respeito, autonomia e segurança para ser e sentir, sem censura ou castigo.

As Efémeras desempenham um papel ecológico vital e vivem acima das águas apenas um dia. Nascer, crescer, amar e morrer – tudo num sopro de vento. O tempo, para elas, não é uma linha, mas um instante. Dançam sobre as águas com asas frágeis, belas, incandescentes. A sua existência é breve, mas, dentro dela, cabe o universo inteiro.

E nós, mulheres, não seremos também Efémeras? Não porque vivamos apenas um dia, mas porque, dentro desta sociedade que nos oprime, querem que sejamos passageiras, silenciosas, invisíveis. Querem que as nossas vozes se apaguem antes do pôr do sol, que as nossas asas se quebrem antes do voo. Querem que sejamos efémeras no mundo dos homens, que passemos pela vida sem deixar marcas, sem exigir espaço, sem nunca sair da água. Sem sair do estado de ninfas.

Mas resistimos.

A cada dia que nasce, somos efémeras e eternas ao mesmo tempo. Querem roubar-nos o corpo, a liberdade, o prazer, mas ainda dançamos, ainda falamos, ainda queimamos como fogo sobre a água. O machismo e o patriarcado tentam encurtar os nossos voos, sufocar os nossos desejos, condenar a nossa existência a um ciclo controlado.

 Mas não aceitamos.

O feminismo é a luta contra essa brevidade imposta. É a recusa de viver apenas o instante permitido, é a exigência de todo o tempo, de todos os espaços, de todos os direitos. O feminismo dá-nos asas que não se partem ao vento.

As Efémeras podem ter apenas um dia, mas nós escolhemos que o nosso tempo seja infinito.

E, juntas, multiplicamos a nossa existência até que não nos possam jamais apagar.

Não desistiremos.

 

Para citar este artigo:

OLIVEIRA, Amala. A Promessa Do Fogo Verde. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/a-promessa-do-fogo-verde/, número 57, 2025

Guia-me Senhora minha, Senhora dos fogos da forja e da cura, musa da poesia e das habilidades manuais. Guia o meu coração e guia a minha clarividência.

Como num sonho, imagens sem sentido vêm e vão, umas demorando-se mais do que outras, até que por fim emerge um rumo, um significado.

Amala Oliveira

Amala Oliveira

Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator

Sou Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator, pioneira da Sexualidade Sagrada em Portugal, vivendo-a e partilhando-a como um caminho de devoção, cura e revelação.
Investigo o Paganismo e Xamanismo Ibéricos, tendo sido iniciada na Bruxaria Tradicional Portuguesa pela minha mãe. Sou Buscadora de Visão, Temazcalera e Guardiã de Fogo Sagrado pela linhagem da Abuela Margarita.
Herbalista aprendiz do mestre alquimista Juan Plantas nas plantas mágicas e medicinais da Península Ibérica, sou a fundadora do projecto SAGRAR e autora do Oráculo dos Animais da Península Ibérica.