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Biografia dos Dias sem Princípio
Coluna de Inês Peceguina
7 MIN DE LEITURA | Revista 57
Precisaremos ainda de um corpo?
parte I
No seu livro O aroma do tempo, Han (2009, p. 53), que aqui se debruça, em particular, sobre o tempo e a temporalidade, refere: “A aceleração acarreta um empobrecimento semântico do mundo. (…) Tudo o que não se pode fazer presente não existe. Tudo tem de estar presente.”
Apesar de, com regularidade, me dedicar à observação de padrões, repetições, tendências, sobre as quais foram antes desenhadas hipóteses sobre diferenças estatisticamente significativas, que resultam de experiências significativamente diferentes, assumindo que a diferença é tão grande ou tão profunda que a balança da matemática consegue pesá-la em comportamento e emoções, apesar disso, escrevia, na realidade, mesmo que cada pessoa se possa situar algures numa curva de distribuição normal, mesmo que seja possível identificar semelhanças que a aproximam de uma certa tipologia de pessoa, apesar disso, escrevia, há nuances, singularidades, e a história de cada um é única e irrepetível.
Porque cada um existe sempre na relação complexa com tudo, tudo, mesmo tudo o que existe no(s) seu(s) lugare(s). O impacto desses lugares, imagino-o como a ondulação que se propaga em círculos, quando uma pedra é atirada à água. A perturbação causada pelo impacto dilata-se com o passar do tempo, distanciando-se. À semelhança, quanto mais perto do epicentro, maior o impacto estimado que as experiência podem ter num organismo. E esse impacto, a sua dimensão e extensão, não se medem apenas pela profundidade de cada experiência, de cada relação e interação, mas também a partir da repetição de experiências de “baixa intensidade”.
Água mole em pedra dura.
Aquelas coisas que se vão constituindo como paisagens acústicas do nosso crescimento. Sendo a família nuclear, maioritariamente, a estrutura primeira e primária cujo efeito tende a ser maior, em particular durante os primeiros anos de vida, mas não apenas.
Deixas cair tudo… estás sempre no mundo da lua… és muito inteligente… gorda/o.
Nada que faça desabar de uma vez só, nada que faça jubilar de uma vez só, mas que ao longo do tempo, muito tempo, tempo continuado, sem contraponto, entra para dentro da pessoa.
Internaliza-se.
Apropria-se.
A recorrência das respostas e das interações que temos com os contextos mais próximos, e os objetos humanos e não humanos que fazem parte desse contexto, vai definindo uma certa forma de ver o mundo e de nos vermos, a nós, no mundo. Passam a configurar o desenho e a forma como nos desenhamos, como nos projetamos para fora. A partir de um certo momento, já sem a “ajuda” do exterior.
Sempre uma forma de adaptação ao diálogo dentro-fora-dentro-fora-dentro- .
Incessante.
A adaptação é um escudo. Ajuda a atravessar com menos dor. O problema das adaptações é que, às vezes, mesmo na ausência da ameaça, permanecem ativas. E os escudos, quando não são necessários, pesam muito. Interferem e impossibilitam a compreensão de outras possibilidades de existência.
Tenho pensado nos meus alunos. Pessoas ainda muito jovens. Mal adultos.
Tenho pensado nas pessoas com quem me cruzo nos transportes públicos. Algumas que já reconheço.
Repetição.
As pessoas com quem me cruzo no trânsito. Uma ode à hostilidade.
Tenho pensado no tempo e na aceleração do tempo.
E na crescente dificuldade que tantas pessoas parecem ter em compreender que existe um mundo e um (vários) outro(s) fora de si. E que o que está fora de nós, às vezes, precisa de um certo tempo para ser visto, ouvido, sentido.
Penso na ausência qua a presença continua do acesso ao mundo, através das tecnologias, traz. Ou parece trazer.
Não é exatamente, não necessariamente, acesso à informação. É o acesso só. Acesso a conteúdos. Progressivamente mais condensados para reunir apenas o que não precisa de digestão. Como o açúcar. Um pico de interesse. Que logo a seguir se esvazia, solicitando novo prazer imediato. Um espécie de processo de Bolonha aplicado ao mundo em geral. Eliminam-se as disciplinas teóricas, a história, a antropologia filosófica.
As coisas que precisam tempo e que se demoram a fazer compreender.
Anos, às vezes.
A aceleração leva-nos instantaneamente a todos os lugares. Em teoria. E, ao mesmo tempo, retira-nos do único lugar onde existimos de facto. Que é o lugar onde estamos. Agora mesmo.
Um corpo. Um corpo no espaço e no tempo.
O corpo, também, diria, deixa de estar presente. Ali. Não existe, ali. E como os lugares para onde a atenção se desvia também não existem de facto, com corporeidade, é como se o corpo cessasse de existir.
Não cabemos todos cabem dentro das mesmas categorias. Nem me parece que, no geral, as pessoas mais novas tenham empobrecido em termos de conteúdo interno. Não é uma questão, só, de idade. Mas é naturalmente mais suave que esse estado de impermanência no corpo e nos lugares reais onde o corpo se movimenta, se possa desenvolver mais agilmente nos organismos com menos tempo de existência. Por causa da falta de relevância e de experiência de outras formas de relação. Pela ausência de contraponto. De negativo.
Se enquanto a criança esteve no baloiço, ou a adormecer, o seu cuidador ou cuidadora teve à sua frente um ecrã, mesmo que estivesse numa qualquer atividade erudita, na prática, não esteve presente. Se em qualquer situação social o ecrã ocupa o centro da atenção, então não existe realmente social, não entre as pessoas que ali estão. Porque não estão, realmente, ali.
O baloiço.
Não viu o peito avançar e expandir-se quando o baloiço subiu mais do que o esperado.
Não viu o arrepio, nem os olhos que se fecharam, o cabelo numa dança de audácia e medo. Perfeito. O corpo quente, da conquista.
Adormecer.
Não viu nem sentiu os ligeiros espasmos do corpo que atravessou esse limiar invisível para onde nos esquecemos que, entrar, exige sempre uma certa confiança de que se regressa e, ainda, que enquanto ali estivermos, alguém nos vê e nos segura.
Não viu agitarem-se as expressões faciais, a abertura ao onirismo. Os guardiões da moral e dos bons costumes possivelmente também adormecidos, dando lugar ao desejo, ao impulso, sonhados sob a forma de situações e objetos mais ou menos simbólicos.
Quando triangulamos as nossas relações com um ecrã, em particular com as pessoas com quem temos uma relação (e responsabilidade) de cuidadores/educadores, e tanto mais, quanto mais jovem for a pessoa, maior o empobrecimento da sua semântica (e da nossa, mas com níveis diferentes de propagação).
Sem juízos de valor sobre as mudanças sociais e culturais, relacionais.
Há sempre uma tendência para acreditar que a nossa vivência de um certo tempo é sempre melhor que outras vivências que ainda nem sequer conhecemos bem.
Mas há um ponto sobre o qual me tenho demorado. E que, na minha opinião, é um ponto de de potencial ruptura.
Naturalmente que estou a pensar na minha experiência mais imediata e naquilo que observo e que tem apenas paralelismo com as sociedades em que a mesma transformação de triangulação com um ecrã aconteceu/acontece.
Não é um problema da humanidade. Pode nem ser sequer um problema, se pensar no que acontece agora mesmo no mundo.
Ainda assim.
Tenho pensado a progressão com que tantas pessoas deixam de se relacionar com as outras pessoas. Como deixam de observar. Como deixam de ouvir e refletir sobre o estar num certo lugar. Que cada lugar tem as suas próprias características. Que o espaço interno, o pensamento, o sonho, os desejos, as intenções, são espaços que são, supostamente, interiores, privados. Como tal, somos (mais ou menos) livres para pensar, sonhar, desejar e até ter determinadas intenções, que antecedem comportamento. Mais ou menos, porque os nossos pensamentos, a nossa habilidade para pensar de uma certa forma é condicionada e vai sendo desenvolvida através dessa continuidade multi-interativa.
Ainda assim.
Depois, fora de nós, nos outros lugares onde existem outras pessoas, outros elementos, é preciso, em teoria, articular o mundo interno com o dos outros, o mundo interno dos outros. Perceber que também terão um lado de dento, que é sempre ligeiramente (ou muito) diferente do nosso. E, nessa constatação, antes de agir, pesam-se impactos. Avaliam-se susceptibilidades. Define-se o tamanho e a importância de cada relação. A importância de cada um/a nesse lugar.
É através de processos como a educação, a socialização e a aculturação que vamos compreendendo as regras implícitas. E cada pessoa traz consigo a possibilidade (umas mais do que outras), de pensar e pôr em questão essas regras.
A adolescência costuma ser um tempo especialmente profícuo nesse questionamento. Mas a infância também. Aliás, diria que qualquer tempo, se continuarmos a pensar e a ter dúvidas. Mesmo sobre o que já fazemos ou fizemos em modo automático.
Acontece que a socialização, a educação, a aculturação, até agora, tendiam a ser especialmente conduzidas por interações com pessoas e objetos e lugares reais. Em tempo real. Um processo de co-construção. Que vai dando orientações ou pistas sobre como fazer, como ser.
Na perda gradual da realidade relacional que acontece corpo-a-corpo, deduzo, perde-se também o eco do mundo exterior. E cada um de nós, progressivamente, deixa de ter interesse sobre esse mundo.
Se estamos cada vez menos presentes, absolutamente presentes, quando nos relacionamos ou interagimos com alguém, em particular se esse alguém for alguém que está num processo de compreender como é que estas coisas têm funcionado, a matriz não deixa de ser desenhada, mas ocorre de uma forma solitária.
Eu-comigo-mesmo.
As referências que chegam aos miúdos, mas não apenas aos miúdos, não contêm troca, transferência, são unidirecionais. Mas são igualmente eficazes em definir o norte, ou o sul. São poderosas a sugerir caminhos. São efetivas (mas defetivas) no estímulo e na decisão que depois, cada uma destas pessoas, seguindo os seus influencers que ocupam uma posição semelhante à de um guru, inacessível, idealizado, vai tomando. Seja sobre aspetos mais superficiais, como a roupa, o cabelo, ou sobre aspetos mais profundos, como a rotura de uma relação amorosa, as noções de público e privado, de intimidade.
Para citar este artigo:
PECEGUINA, Inês. Precisaremos ainda de um corpo? – parte I. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/precisaremos-ainda-de-um-corpo/ , número 55, 2024
Tenho pensado a progressão com que tantas pessoas deixam de se relacionar com as outras pessoas.
Como deixam de observar.
Como deixam de ouvir e refletir sobre o estar num certo lugar.
Que cada lugar tem as suas próprias características.
Que o espaço interno, o pensamento, o sonho, os desejos, as intenções, são espaços que são, supostamente, interiores, privados.
Como tal, somos (mais ou menos) livres para pensar, sonhar, desejar e até ter determinadas intenções, que antecedem comportamento.
Mais ou menos, porque os nossos pensamentos, a nossa habilidade para pensar de uma certa forma é condicionada e vai sendo desenvolvida através dessa continuidade multi-interativa.
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Inês Peceguina
PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação
Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.