artigo de Maria Trincão Maia

Melodia Telúrica 

5 MIN DE LEITURA | Revista 57

No alto do monte alguém chamava, chocalhavam os ossos dentro do saco. O braço fino e pálido abanava o saco de serapilheira. Abanava tanto que se tornava música, uma espécie de sinfonia terrena. Grave como o pulsar da terra. A figura era alta e esguia, os cabelos esvoaçavam pelo rodopio do vento. E o corpo, como se tivesse separado do braço, mantinham-se imóvel. Quase se podia confundir com uma estátua se não fosse pelo cabelo e pelo braço que abanava o saco de ossos. Era pálida e ossuda, como se a carne já não existisse entre a pele e o osso, mas o coração batia forte. Batia enquanto chocalhava o saco de ossos e a chamavam. 

“Vem” o sussurro maternal entrava-lhe pelos ouvidos. Era a única palavra que escutava, com o chocalhar dos ossos e a palavra “vem” repetida ternamente, o sono envolvia-a. Era tão reconfortante. Adormecia e sonhava, sonhava com o interior da terra, que era solo, minhoca, cogumelo, raposa, gato. Sonhava que era água de rio que ia ter ao mar, nuvem, nevoeiro e glaciares. E acordava envolvida da mesma música reconfortante. Tentou levantar-se no primeiro dia, mas voltaria a adormecer, no segundo caíra no mesmo sono… Só ao sétimo dia se levantou, a casa de tábuas corridas rangia a cada passo. O cabelo longo, negro e desgrenhado pelos dias de cama tornavam-na quase uma assombração. Caminhou até ao roupão, o quente que agora a abraçava deu-lhe ânimo. Caminhou descalça pela casa, os dias sem comer deixaram-na fraca. O corredor parecia longo, mas as paredes apoiavam-na. Sempre o tinham feito. Na cozinha um prato de sopa quente, um caldo de galinha onde a gordura boiava como pequenos lagos dentro da própria água. Ninguém estranhou a sua ausência, perguntou-se se alguém tinha realmente dado pela sua prolongada sesta. “Penteia-te e veste-te, não se almoça de pijama” disse-lhe a voz por cima da melodia que não deixava de ouvir. “Sim, mãe”, respondeu. Comeu o caldo, uma tigela atrás da outra, até se sentir com força para segurar as paredes que a seguravam há pouco. Levantou-se a correr, foi direita ao quarto, penteou-se e agora o seu cabelo parecia uma cortina negra brilhante. Os fios de prata quebravam a monotonia do cabelo perfeito. Vestiu-se rápido antes que fosse novamente embalada pelo sussurro maternal e melodia telúrica. Abriu a janela e viu a figura que a chamava.

Correu pela casa e perguntou se alguém ouvia alguma coisa, todos acharam que era outro miado de gato que pudesse estar a ouvir. Disseram calmamente que não e ela compreendera que só a ela a figura chamava. Respirou fundo, rodou nos calcanhares, sem saber porquê dirigiu-se ao cofre, que se abriu mal lhe tocou. Confusa, achou que teria ficado mal fechado, retirou um fio e um anel. Sabia de quem eram, eram a companhia ideal para aquele encontro. O xaile de lã centenário que usava sempre lhe cobria as costas. Tinha o que era necessário, pensou. Várias imagens apareceram, já se tinha acostumado a ver duas coisas diferentes no mesmo sítio. Como quem olha para duas fotografias sobrepostas. 

Saiu de casa. Já na rua compreendera que as folhas das árvores cresciam e caiam em simultâneo, que as plantas silvestres rebentavam o solo, cresciam, floriam e morriam vezes sem conta. Ficou a olhar para a laranjeira das laranjas doces e grandes que floria e dava laranjas tão depressa que não conseguiu apanhar nenhuma. As urtigas picaram-na vezes sem conta e tanto tinha calor como frio. Saiu o portão. No monte, a paciente figura continuava ternamente a dizer: vem. Não havia medo, nem pressa, não havia aflição, nem angústia, também não havia alegria ou felicidade. Mais nada para além de ternura. Agora cada vez mais perto, o seu coração começa a bater ao ritmo dos sons telúricos do saco de ossos. Subiu ao monte até a figura. 

A pálida figura sorriu-lhe ternamente e parou de abanar o saco. “Vieste” disse. “Sim, vim” respondeu. Aos seus pés dois dragões alados enroscavam-se um no outro, pareciam dois gatos cansados de brincar que agora descansavam calmamente. Ficou a olhar para eles, em cada escama via figuras que se movimentam, apareciam e desapareciam, por momentos pensou reconhecer algumas, voltavam a desapareceu. Vários momentos eram representados, uns do passado, outros do futuro. Até que viu nos dois dragões a presente cena que ela própria vivenciava. Os seus olhos abriram tanto que parecia que podia ver o mundo inteiro. A voz terna disse-lhe “Toma são teus, são nossos” e passou-lhe o saco de ossos para a mão. Os dragões acordaram nesse momento e levantaram voo, voaram em volta dela e da figura, três voltas. E sentiu a força telúrica a subir-lhe pelo corpo. Olhou para o chão debaixo dos seus pés agora descalços e quando voltou a olhar à sua volta já não havia a figura nem os dragões. Só ela estava no monte, procurou o saco de ossos na sua mão e também esse desaparecera. O xaile abraçou-a com carinho, o anel e o fio davam-lhe um calor reconfortante.

Voltou para casa, e na laranjeira das laranjas doces uma laranja esperava por ela. Comeu-a da única forma que sabia comer laranjas, junto à árvore a furar-lhe a casca com as unhas dos polegares como quem desbrava a vida com vigor. No lugar dessa laranja nasceu de imediato uma flor que a fez sorrir. Subiu as escadas abertas para o mundo e as portas de casa abriam-se para a receber. E de relance viu a sombra de uma cauda de dragão alado, assustou-se quando a gata lhe subira para ombros e a cadela encostara-se às suas pernas.

Estava de novo calçada.

Para citar este artigo:

MAIA, Maria Trincão. Melodia Telúrica. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/melodia-telurica/, número 57, 2025;

Saiu de casa. Já na rua compreendera que as folhas das árvores cresciam e caiam em simultâneo, que as plantas silvestres rebentavam o solo, cresciam, floriam e morriam vezes sem conta. Ficou a olhar para a laranjeira das laranjas doces e grandes que floria e dava laranjas tão depressa que não conseguiu apanhar nenhuma. As urtigas picaram-na vezes sem conta e tanto tinha calor como frio. Saiu o portão. No monte, a paciente figura continuava ternamente a dizer: vem. Não havia medo, nem pressa, não havia aflição, nem angústia, também não havia alegria ou felicidade. Mais nada para além de ternura. Agora cada vez mais perto, o seu coração começa a bater ao ritmo dos sons telúricos do saco de ossos. Subiu ao monte até a figura.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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