A Casa Da Floresta

Coluna de Élia Gonçalves e Patrícia Rosa-Mendes

4 MIN DE LEITURA | Revista 57

Invisível

“O invisível é omnipresente e tomado como garantido nas nossas vidas quotidianas, tanto como aqueles poucos e quase irrelevantes centímetros do topo do iceberg a que chamamos visível.” – David Whyte (tradução livre)

Quanto das nossas vidas é invisível? Quanto se passa por dentro, debaixo, escondido dos olhares e da análise? Num mundo em que a visão ganhou primazia sobre todos os outros sentidos, e em que os nossos olhos passam horas sem fim a olhar para écrans. Numa cultura onde o valor é dado pelos parâmetros lógicos e analíticos do hemisfério esquerdo, e a prova de existência segue a possibilidade de capturar e de mensurar, quanto nos escapa, e quanto do que é invisível nos comanda, nos sustém, nos transforma?

Queremos explicar tudo o que vamos vivendo, tudo o que vamos observando. Parece-nos que a explicação nos pode ajudar a ter poder sobre a vida. Damos nome ao que surge, e nesse nomear, tornamo-nos donos e senhores disso, capazes de nos erguermos acima das circunstâncias e dominar o contexto. E, ainda assim, a explicação só pode servir até um certo ponto. Tantas vezes, sabemos perfeitamente o que nos aconteceu, de onde vem e o que nos causou, no entanto, continuamos a sentir o mesmo, continuamos presos em padrões que podem ir da simples repetição ao sofrimento profundo.

Descartamos a capacidade de imaginar, os sonhos e as sensações internas porque a sua subjectividade escapa ao controlo das leis e regras que temos vindo a redigir para nós, contorna a segurança daquilo que parece sólido e estável e abre portais para profundezas escuras e desconhecidas. Achamos que compreendemos os motivos e razões por detrás deste comportamento, as intenções na base destas palavras ou as atitudes dos que nos rodeiam.

A verdade, é que vemos o mundo apenas na superfície: os nossos cinco sentidos captam apenas parte daquilo que nos rodeia, e a nossa mente, apesar de todo o conhecimento que pode albergar, tem um alcance limitado, seja para fora, seja para dentro de nós. O que está consciente, o que está visível, é apenas uma pequena parte – a mais pequena – de tudo aquilo que nos é invisível, tudo isso que está acima, abaixo, por dentro e para lá de cada um de nós.

O invisível é omnipresente, como diz o poeta David Whyte, e é o corpo da própria Vida, aquela que se desenrola num constante devir sensível, senciente e inteligente, sistemas dentro de sistemas, em milhões de interacções, sinapses, sinergias e trocas, numa eterna e infindável rede de relações, também elas invisíveis, também elas suportadas por seres invisíveis e imprescindíveis, como as bactérias, os vírus, os seres unicelulares. Esses são os pequeninos a quem devemos a possibilidade de estarmos vivos, os “intocáveis” desta imensa teia.

Invisíveis são muitas das relações entre tudo o que existe, os fios que tecem a teia com uma inteligência tão surpreendente quanto paradoxal, tão extraordinária que, mesmo nos breves momentos em que o véu se levanta, inspira em nós a sensação de espanto, reverência e comoção. Invisível é a força de vida que pulsa em cada ser vivo, que o faz querer viver, acima de qualquer outra coisa, num instinto tão primitivo e tão elaborado que nos parece, muitas vezes, “personalidade”. Invisíveis são as emoções, que nos preenchem como ondas, atirando-nos para lá e para cá, parecendo que nos vão engolir por inteiro ou que nos permitem flutuar em serenidade. Invisível é a Alma, essa parte de nós que nos agita, que nos chama, que clama por conexão profunda com os Outros, na sua multiplicidade inumerável, e se expressa na saudade, nas nossas angústias e nos nossos anseios. Invisível é o amor, esse que é mais do que emoção, que guia as nossas vidas de formas tão estranhas, tantas vezes contra o que o bom-senso nos avisa ou a razão nos aconselha; o amor que não cabe em nenhuma caixa e que, no fim de tudo, é tudo o que desejamos viver.

Viver na superfície – das coisas, do mundo, das relações – pode parecer seguro e confortável, mas é uma vida amputada. Honrar o invisível é baixar a cabeça perante o Mistério, aquilo que é numinoso, inefável, e pulsa nos nossos ossos, corre no nosso sangue e late nos nossos corações. Nunca saberemos tudo e nunca seremos os Senhores da Criação. Imaginar que sim, por muito que possa ser, também isso, um impulso da força de vida, é caminho para a desumanização total, fonte de arrogância absoluta daquilo que, em nós, é mesquinho e pequeno. Somos, e seremos sempre, uma parte desta teia e uma gota deste imenso oceano invisível. Não precisamos de compreender tudo, de nomear tudo, de catalogar ou capturar tudo. Podemos relembrar, a cada dia, o invisível, honrando-o. Eventualmente, teremos de nos render a ele, e passar a ser, também, gota nesse oceano.

Para citar este artigo:

GONÇALVES, Élia; ROSA-MENDES, Patrícia. Os lugares de paradoxo. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/invisivel/, número 57, 2025;

Invisível é a Alma, essa parte de nós que nos agita, que nos chama, que clama por conexão profunda com os Outros, na sua multiplicidade inumerável, e se expressa na saudade, nas nossas angústias e nos nossos anseios. Invisível é o amor, esse que é mais do que emoção, que guia as nossas vidas de formas tão estranhas, tantas vezes contra o que o bom-senso nos avisa ou a razão nos aconselha; o amor que não cabe em nenhuma caixa e que, no fim de tudo, é tudo o que desejamos viver.

Patrícia Rosa-Mendes

Patrícia Rosa-Mendes

Terapeuta Transpessoal

Instrutora de Meditação
Formadora na EDT – Escola Transpessoal
Tradutora
Contadora de Estórias
Mitologia – Arte – Eco-psicologia

Autora do Livro A Loba à Espera.

Patricia.mendes@escolatranspessoal.com

Élia Gonçalves

Élia Gonçalves

Colunista e Autora regular da Revista

Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal

Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia

elia.gonçalves@escolatranspessoal.com