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Onde mora o coração, histórias e paisagens
Coluna de Ana Sevinate
3 MIN DE LEITURA | Revista 57
Inverno, podes ficar e sonhar mais um bocadinho porque as tuas flores não se demoram
Escrevo hoje a partir daqui, de um lugar que é visceral, que é para além e anterior às palavras, que é lugar da travessia e da ponta dos dedos. Já não pode passar pelo filtro pseudo intelectual nem pelo crivo armado em juiz que tantas vezes me distraem, me aprisionam, me calam, me entorpecem.
Neste momento não procuro palavras doces nem floridas, pois ainda não é tempo e ainda que sinta falta delas. Sei que não se irão demorar.
Morreu mais um pedacinho de mim e o meu coração parou por um segundo. Dor sem nome nenhum e com todos eles. Sei que não se irão demorar, as flores e as palavras doces. Choro-o e adormeço-me. Sei que a poesia, essa, nunca morrerá. E por isso atravesso, em círculo, em parceria, sozinha. Atravesso, o inverno, uma vez mais.
Encontro-o, a cada ano mais profundo.
Ouço-o, a cada ano, com mais nitidez e sinto-me cada vez mais pequenina perante o seu mistério.
E por momentos volto e esquecer-me da sua intrepidez e desvalorizo, à imagem do mundo, o tempo, o aconchego e a ternura que o inverno e a morte exigem. Relembram-me assim que o meu corpo me pede para voltar ao chão e ao calor da terra e do lume. Cresço, a cada ano, inevitavelmente, na possibilidade do amparo e por isso, relembro-me uma vez mais e ainda que por um instante.
Deito-me no seu colo. Em círculo, em parceria, sozinha.
Hoje morreu mais um pedacinho de mim. Não tem nome nenhum, mas conheço-o. Embalo-o e despeço-me. Mais um pedacinho de quem imaginei um dia ser. E contrariando a minha pressa de chegar à outra margem, o inverno e a morte relembram-me uma vez mais que vou precisar de ir atravessando no tempo que antecede a semente. Porque não se irão demorar nem as flores nem o que sempre foi para ser. Aconchego-me, tanto quanto consigo agora. Sinto-me cada vez mais pequenina e cada vez maior.
Mais pequenina perante a lucidez que a escuridão concebe, maior à medida que vou ocupando o meu tamanho em cada flor que nasce na pele. Não se irão demorar.
Levanto-me encolhida pois o inverno invadiu o terraço e não sei como lhe fugir. Sinto o alívio de quem desiste de lhe resistir. Olho-o nos olhos porque hoje entrego um pedacinho de mim à chuva, ao vento e às raízes. É sublime na sua penumbra, incansável no seu silêncio e inabalável na sua missão. Aquela que é a missão de nos atravessar. Para que o que é espontâneo possa emergir, por fim, das margens. Não aquilo que é plantado, mas aquilo que é trazido pela chuva, pelo vento e pelo coração do chão. Daninho, bravio, insubordinado. E o que é espontâneo brota também da ponta dos dedos, porque também eles terão flores na sua pele. E dessas flores nascerão o inimaginável, o impensável e o inadmissível.
Mas sempre, no final das contas, sonhado. Pelo inverno.
CÍRCULOS DE LUTO
com Ana Alpande e Ana Sevinate
Reunimo-nos em círculo, para podermos atravessar lugares de perda, unid@s pelo mesmo chão e pelas linhas que tecem e entrelaçam panos e histórias. Em breve mais informações sobre os próximos círculos.
Para citar este artigo:
SEVINATE, Ana. Inverno, podes ficar e sonhar mais um bocadinho porque as tuas flores não se demoram. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/inverno/, número 57, 2025
Levanto-me encolhida pois o inverno invadiu o terraço e não sei como lhe fugir. Sinto o alívio de quem desiste de lhe resistir.
Olho-o nos olhos porque hoje entrego um pedacinho de mim à chuva, ao vento e às raízes.
É sublime na sua penumbra, incansável no seu silêncio e inabalável na sua missão.
Aquela que é a missão de nos atravessar.
Para que o que é espontâneo possa emergir, por fim, das margens.
Não aquilo que é plantado, mas aquilo que é trazido pela chuva, pelo vento e pelo coração do chão. Daninho, bravio, insubordinado.
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Ana Sevinate
Psicóloga clínica e psicoterapeuta
Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida.
Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.
Consultas de Raiz Online