Ecoespiritualidade

Coluna de Jorge Moreira

5 MIN DE LEITURA | Revista 57

História do meu quotidiano urbano de ontem

Toda a cidade com as agulhas dos Templos, as torres cinzentas, os pátios e os muros em que se cavam escadas, varandas com os seus restos de tapetes de quarto pendurados e o estripado dos seus interiores ao sol fresco, tem toda ela uma forma, uma alma de muralha. 
Agustina Bessa Luís
Habito numa zona da cidade, onde a urbe ainda se encontra salpicada de verde. É aí que gosto de viver, entre o perfume da urze, a frescura de carvalhos e sobreiros autóctones e o chilrear melódico da passarada natural. Não obstante, a malha histórica gracejada pela traça medieval que caracteriza a Invicta junto ao Douro, convoca a minha presença periódica, mimoseando-me com miragens reais, que revelam tanto do visível como de incognoscível local, mas que nunca se repetem. Lá, há quase sempre magia no ar, não fosse as pontes suspensas no nevoeiro a ligar sonhos dos locais aos sonhos dos forasteiros. Por isso, as máquinas fotográficas e os smartphones andam num corrupio, beijando cada recanto, cada ângulo, cada suspiro, cada sorriso. E, quando a Ribeira chama por mim, lá tenho de ir ter com ela. Ontem, foi um desses dias. 
Iniciei a minha caminhada junto ao rio, na outra margem, ou melhor, no outro lado das pontes, onde Baco instalou as caves do seu precioso néctar mundialmente conhecido. Talvez seja por isso que a melhor vista do Porto é de Gaia. Seguia ao lado da fileira de rebelos, junto à margem, que flutuavam em linha, cheios de pipas para ‘inglês ver’. No meio do rio, outros rebelos, maiores, alegres, faziam as delícias dos turistas. Alguém me chamou, pensava eu, mas era o Sol qua atrás de mim se preparava para mergulhar no rio, começando a tingi-lo de fogo. Ao meu lado os restaurantes já fumegavam sabores apelativos. A memória do local ainda retratava a poluição do tráfego automóvel de tempos idos. Mas agora há espaço. Espaço para passear, para sentar, para flutuar entre as imensas línguas e inabituais olhares, que também partilham o maravilhoso quadro. O passeio de granito tomou conta da via, convidando à fraternidade entre humanos e estes com os elementos locais. Certamente que não são só físicos. Há uma alma do local que exalta estados de alma.
Chego à ponte imponente de ferro, tão inspirada no Eiffel. Começo a travessia no tabuleiro inferior entre inúmeros transeuntes, tantos que me faziam serpentear entre o respirar ruidoso do trânsito automóvel. Fugi para a Ribeira. Aqui, o ruído era bem diferente. Carros, só de emergência. O som soltava-se das emoções contidas e expressas entre, talvez, milhares de almas, ora pausadas nas esplanadas com olhares de amores, à espera de outros sabores, ora vagueando paradas entre melodias que se soltam de interessantes instrumentistas. A guitarra clássica, o saxofone, o violino, os teclados, embora separados, geravam ecos celestes. Mais além, um som psicadélico gritava de uma coluna de som. Junto desta, uma curiosa e acrobata coreografia juntava uma roda de gente admirada. Ao lado, o rio agora mais sereno, que já teve melhor cheiro, corria docemente para o mar. Resolvi deixar a sua margem e subi à rua das Flores. Quem te conheceu! Ainda se encontra uma ou outra obra em recuperação, mas o espaço está de cara lavada. Bela rua. Florida de espaços diferentes. A maioria são novos negócios, entre restaurantes e cafés, lojas de souvenires e alojamentos locais, mas há hotéis, igrejas, museu e ainda um alfarrabista. Talvez o único sobrevivente dos negócios idos. No cimo da rua, espreita São Bento, ponto de partida para outras paragens. Pela rua, o velho e gasto paralelepípedo é agora um tapete uniforme e polido de granito. As fachadas são as mesmas de outrora. Painéis de azulejo tradicional com padrões ou traçados azulinos, sublimes, emoldurados a pedra. Outras cores, essencialmente monocromáticas, juntam-se ao desfile, expondo relevos vítreos geométricos. As pequenas varandas de pedra são forjadas a ferro e as madeiras ainda separam o privado do comum. Mas há elementos contemporâneos, fenóis e metais, entre a chapa ondulada tradicional e as ardósias semicirculares, sobretudo nas paredes laterais. 
Decido virar numa das travessas escuras perpendiculares à rua das Flores, mergulhando num ambiente marcado por frontarias bastante enrugadas e enferrujadas. Os gatos olham-me desconfiados e fogem de mim entre as tocas urbanas. Tenho de ter algum cuidado com os dejetos de cão distribuídos pelo passeio. Há vida humana nas tascas tradicionais, aromatizadas pela acidez do vinho rasca. Aqui, o vernáculo tripeiro é a língua oficial. Na porta destes estabelecimentos moram homens desequilibrados, de olhares trocados e distantes que se metem com quem passa. Fujo rapidamente dali, procurando uma rua mais ampla. A Mouzinho da Silveira é o meu refúgio de volta à Ribeira. Também foi renovada. Mas, não sei se é do lusco-fusco do dia, se do ambiente urbano degradado donde tinha saído. Acordo estremunhado com um lado da cidade menos romântico. Alguns sem-abrigo começavam a mostrar-me o seu leito ao relento e os pedintes não me largam. É só para um pão, dizem, mas o bafo, não engana. Tristes almas! O que posso ou o que devo fazer? É uma pergunta que me incomoda sempre nestas alturas. 
Chego novamente à festa da Ribeira. O porto apresenta-se nas mesas. Aperitivo, diz um dos menus. Há quem o beba suavemente, vidrado no bailado da vela sobre a mesa. Ao lado, a Super Bock engole várias francesinhas, incluindo a apetitosa versão vegetariana. Fico com água na boca. Levo-me imediatamente dali e entro na muralha de casario antigo e renovado. Atravesso um túnel, que me leva a pátios e escadarias de sonho. É um lugar tanto de velho, como de belo e encantador, que só nos filmes fantásticos se encontra. Os balões iluminados de São João estão suspensos nas traves de madeira. Os vasos com flores decoram paredes e o chão mostra lajes tão gastas. O cheio é outro. De outros tempos, misturado com as atuais especiarias da comida e o perfume das senhoras. Também o som é bem diferente, mais suave, elevando outros sentidos pelo local. 
A noite já caiu e já jantei a alma tripeira. Há outro espaço que agora chama por mim, mais silencioso, mais ecológico. É hora de voltar às veredas urbanas verdes. É hora de voltar a casa.

Para citar este artigo:

MOREIRA, Jorge. História do meu quotidiano urbano de ontem. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/historia-do-meu-quotidiano-urbano-de-ontem/, número 57, 2025

No cimo da rua, espreita São Bento, ponto de partida para outras paragens. Pela rua, o velho e gasto paralelepípedo é agora um tapete uniforme e polido de granito. As fachadas são as mesmas de outrora. Painéis de azulejo tradicional com padrões ou traçados azulinos, sublimes, emoldurados a pedra. Outras cores, essencialmente monocromáticas, juntam-se ao desfile, expondo relevos vítreos geométricos. As pequenas varandas de pedra são forjadas a ferro e as madeiras ainda separam o privado do comum. Mas há elementos contemporâneos, fenóis e metais, entre a chapa ondulada tradicional e as ardósias semicirculares, sobretudo nas paredes laterais. 

Jorge Moreira

Jorge Moreira

Ambientalista e Investigador

Licenciado em Ciências do Ambiente, Minor em Conservação do Património Natural, mestre em Cidadania Ambiental e Participação, pela Universidade Aberta, e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É bolseiro FCT e investigador do Centre for Functional Ecology, Science for People & the Planet da Universidade de Coimbra.
É vice-presidente da FAPAS - Associação Ambientalista para a Conservação da Biodiversidade; dirigente da Sociedade de Ética Ambiental, dos movimentos cívicos Alvorecer Florestal e Aliança pela Floresta Autóctone.
É autor de vários artigos dedicados ao ambiente e voluntário em inúmeras ações de defesa, conservação, promoção e recuperação do património natural.
Tem desenvolvido investigação nas áreas da Ética Ambiental, Educação Ambiental, Sustentabilidade, Alterações Climáticas, Ecologia Profunda e Ecologia Espiritual, onde tem realizado conferências e promovido os temas.

shakti@sapo.pt