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Entrelaçamentos Inegáveis
Coluna de Telma G. Laurentino
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Ecologia Mítica dos Monstros
7 de Março 2025 - 19h30 - 21h00
A Revista Vento e Água convida-te para mais um Chá de Urtigas ancorado por Telma Laurentino e Sofia Batalha. Telma Laurentino escreve a coluna Entrelaçamentos Inegáveis, e encontras os vários artigos de Sofia Batalha aqui.
4 MIN DE LEITURA | Revista 57
A poesia ecossistémica de corações rachados contra mentes entorpecidas
Em 2021, uma menina da escola primária perguntou-me “como é que os cientistas inventam as suas perguntas?”
Um ano mais tarde, os meus alunos do curso universitário de ambientalismo sistémico perguntavam-me algo semelhante “como saber o que escolher, onde agir?”
Encontro-me frequentemente com ecos destas questões, vindos de dentro e de fora. A única resposta que emerge, continua a ser a que brotou a convite da menina: tenho dois guias, um é feito de fascínio, curiosidade e amor, o outro é feito de heartbreak (desgosto) e responsabilidade.
O fascínio leva-me a algum fenómeno natural ou organismo que amo e que, por isso, quero conhecer melhor. E quando o foco da curiosidade é biodiversidade, então infelizmente, assim que descobrimos o amor, já a perda se desenrola ou está próxima de chegar. A minha investigação focou-se em compreender como evolui a vida face a alterações ambientais grandes, rápidas, porque me parece o facto mais fascinante da vida na Terra, e porque só compreendendo detalhes desse processo podemos desacelerar a perda face à violência do Antropoceno. Assim, tento pôr a procura pela compreensão de quem amo ao serviço do seu cuidado.
Contrariamente ao paradigma científico patriarcal, nunca fui desligada dos meus organismos de estudo. Nunca ficou de fora a poesia que escutava enquanto passava horas a escrever código em frente ao ecrã. Nunca me fez sentido que aquele conhecimento científico não fosse posto ao serviço do amor e do cuidado de todos. Sigo o método científico à risca, enquanto o coração me bate no peito. Não há incompatibilidade aqui.
Assim, abro 2025 com um poema de desafio. É sobre uma paisagem biodiversa do Oeste português que se foi perdendo para a monocultura de Eucalipto enquanto cresci. Vi as cobras que amava desaparecer, o solo erodir, e o ouvi o canto das rãs esvair-se. Partilho-o porque me parece que vivemos tempos que seduzem a perda do amor, tempos que desafiam o olhar a desviar-se da violência do sumiço. Estas armadilhas de entorpecimento dizem-nos que é para nos poupar ao sofrimento, já que a perda é inevitável. Mentem que é já tarde demais para se cuidar. Recuso a aquiescência de um futuro que ainda não chegou, e por isso imploro em estrofe que tenhamos o atrevimento de seguir ambos os guias: o que fascina e enche o coração e o que o parte, simultaneamente, com gritos por cuidado. Esse coração rachado bombeia poesia ecossistémica, e é muito mais sábio que a mente entorpecida.
Atreve-te
Ao andar pela Floresta que se perde,
atreve-te a escutá-la.
Ao sentir o Solo em luta na planta do pé,
atreve-te a nutrir a sua resistência.
Fareja o Petricor,
atreve-te a louvar o ciclo de água.
Deixa que o ládano da Esteva te inebrie,
atreve-te a sentir a sua resiliência.
Escuta a canção da Rã-verde,
atreve-te a deixar o coração coaxar.
Mira o Picanço-real,
atreve-te a desafiar monarquias.
Observa a Cobra, morta no caminho,
atreve-te a sentir o luto pelo parente.
Descobre o cogumelo entre raízes,
atreve-te a honrar interdependência.
Ri-te do Escaravelho bêbedo de pólen,
atreve-te a zombar dos impérios.
Come as doces flores de Marmelo,
atreve-te a sonhar utopias.
Testemunha a Osga caçando à noite,
atreve-te a ver no escuro.
Nota a Aranha camuflada,
atreve-te a olhar a morte.
Devolve o cajado à mata,
atreve-te a perder tudo dolorosamente,
atreve-te a amar tudo ardentemente.
Para citar este artigo:
G. LAURENTINO, Telma. A poesia ecossistémica de corações rachados contra mentes entorpecidas. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/a-poesia-ecossistemica-de-coracoes-rachados-contra-mentes-entorpecidas/, número 57, 2025
Assim, abro 2025 com um poema de desafio. É sobre uma paisagem biodiversa do Oeste português que se foi perdendo para a monocultura de Eucalipto enquanto cresci. Vi as cobras que amava desaparecer, o solo erodir, e o ouvi o canto das rãs esvair-se. Partilho-o porque me parece que vivemos tempos que seduzem a perda do amor, tempos que desafiam o olhar a desviar-se da violência do sumiço.
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Telma G. Laurentino
Bióloga
Educadora
Escritora
Artesã intuitiva
Biodiversidade – Evolução & Genética – SocioEcologia – Educação inclusiva –
Pertença
TelmaGL.com
Telma.laurentino@gmail.com