Ciclos da Terra e da Alma

Coluna de Íris Lican Garcia

6 MIN DE LEITURA | Revista 57

A Morte tem lugar à mesa.

 

Tem que ter.
É uma Senhora.
Parece que não vem à Ceia de Natal, mas não falha a presença.

Está ali mesmo, inefável e concreta, no cheiro das filhós, que a Avó há 16 anos que não tem mãos para amassar. Porque partiu com a Morte chegado o Verão, mas ainda se senta connosco entre o açúcar, a canela, o medronho e a gargalhada fácil.

Está ali mesmo, nos coscorões que a Madrinha não pode fazer, porque partiu numa tarde de Maio dia da Sua Nossa Senhora. Ainda se nos estalam na boca e se nunca mais lhes sentiremos o sabor, por outro lado, jamais deixaremos de o sentir.

Está nos pratos de louça branca onde as couves da Beira se deitam em montanha, e deleitam o Avô, que ri de água na boca, e embora já não se possa sentar à mesa, está aqui. Dá-nos as mãos com a alegria de viver que jamais se lhe esmoreceu e com que teceu o seu funeral caricato.

Senta-se connosco e dá a mão ao meu Companheiro enquanto o aproxima do Pai, que nunca conheci, e assim permite que o meu filho e seu neto lhe sorria.

Está nas rugas da minha Mãe tecendo caminho lento, que toda ela é Prece e tempo.

No outro dia alguém me disse:
Mas se pões o prato na mesa para quem partiu então não deixas que parta.

Eu sei, bem sei, que numa cultura tão auto-centrada até nos podemos iludir e achar que prendemos seja quem for. Mas quem parte segue o seu caminho, tal como quem fica. É inevitável.

Nunca prendemos ninguém por mais que queiramos e ainda bem que nos é impossível. Ponho o prato a mais na mesa desde a Boa Morte ao dia de Reis. Sim. E bem posto. Depois dou alimento às encruzilhadas e ao chão do Bosque, o resto do ano. Foi-me passada a tradição que é mais velha do que o tempo e também a hei-de passar. Imagine-se: viver sem saudade é viver sem nunca ter amado. Sentimos saudades dos recantos imperfeitos e apuradamente humanos nos seus contornos e abismos de quem fez e se faz parte de nós, na presença como na ausência, num mesmo abraço inestimável de tão diferentes qualidades que o passar do tempo lhe confere.

Os meus lutos e lutas estão-me cravados na pele e nas entranhas, como rugas e sendinhos, porque amo, amei, sou e fui amada de forma única a cada momento. Que mais havemos de pedir?

Não trocava o luto pela felicidade eterna, que nada haveria para aprender aí e eu ainda agora comecei a caminhar, tenho tanto que saber sentir até ser chão.

Sou pagã e serrana na mesma medida, é claro que honro os mortos. Sou lusitana e visto de negro mesmo se coberta por outras cores, é esta a que me cobre o coração. Mantenho os laços com quem está do outro lado do Rio, do Véu.

Nas idas e vindas do tempo.

Não porque as relações tenham sido idílicas, somente ternas e belas como que romanceadas. Ao contrário, nada nos vincula mais do que a dor, e a celebração inevitável que se seguem às lutas e lutos nos pousios.

Não nos ensinaram que a alegria é a maior forma de resistência. Que só a toca quem sabe sentir a dor. Dar pão, água e acender a candeia à dor é a forma mais real de semear alegria. Porque tal como a Morte se senta à mesa assim se senta o Porvir. E quem ainda não sabemos que virá já vem chegando passo a passo e ocupando o seu lugar.

Os filhos, sobrinhos, netos que nascerão já vão chegando. Chegam porque alguém partiu, porque os lugares são tecelagens de tempo, e nós seremos fio de um pavio cuja chama não veremos, daqui de onde agora estamos, pelo menos.

A Morte senta-se à mesa na Ceia. Já a vemos colocar a leve mão nos ombros do meu Pai. Começamos já uma despedida sem hora marcada mas é claro que temos menos tempo do que já tivemos. A vida escoa por entre os dedos, porque somos transbordamento. Sim, o meu Pai vai provavelmente morrer em breve. E eu nada mais quero senão que se saiba amado, aqui como do outro lado, sem quem o puxe seja para onde for, mas indo por seu próprio pé e deixando que forças que não antevejo o acompanhem. O Avô seu Pai e o outro Avô que sempre o viu como um filho admirável e a quem cuidou com Amor imenso, ali estão e já os vejo, sem ter como os ver de todo.

Sorrimos e choramos na mesma medida e há um lugar profundamente cru onde nesta travessia o encanto é imenso diante disto tudo.

Teorizar a morte não é o mesmo que sentir e sentar-se com ela.
Não é.

Beber do cálice da velhice não é o mesmo do que conceptualizar a idade. Não é.

Ser quem se vai aproximando de quem parte e de quem chega neste lugar do meio é desigual de todas as outras idades.

Esta semana refletia nas minhas Amizades e constato que em boa parte me rodeei de pessoas com muita capacidade de corrigir, mas pouca de acolher. Com a melhor das intenções. Percebo porém que não quero nem corrigir, nem ser corrigida, mas ver e ser vista enquanto me transformo e se transforma tudo. Aparentemente estando tudo igual, mas sendo abismal dentro de mim.

A nossa avidez de soluções e respostas é em si a maior ferramenta de criar problemas. Sentar-se na pedra negra do Mistério é tão duro como surpreendentemente acolhedor.

Onde ter que conseguir vencer se torna a opressão do rio que só quer seguir o fluxo e criar caminho sem tornar as margens fixas, na sua identidade própria em movimento. A morte, a idade e a doença não se vencem, apenas são o que são.

E como o bom julgador por si se julga, percebo claramente a tarefa mais importante: passar de jardim a Bosque.

Porque no jardim nada pode ter espaço para ser outra coisa que não a bela.

Já o Bosque, esse, senta-se com a Morte todos os dias e faz dela chão fecundo.

Não fosse este saber pagão desconcertante e claro no ser aquilo que é, eu neste momento não saberia habitar-me, seja lá isso o que seja e o que me vá tornando.

É porque a Morte se senta connosco à Ceia que pude finalmente lembrar que se uma parte da família se tece a senso de sacrifício e sofrimento, a outra, pastoril, se tece a alegria que atravessa o gelo, a ausência e o frio, como lume. Como lume.

Pude finalmente perceber o que sempre me foi dado a testemunhar pelas mulheres anciãs da família sem que nunca o tivesse visto como um exercício de grandeza e liberdade: que cuidar e celebrar não são dinâmicas opostas mas complementares. Quem se transborda por se reconhecer nascente tem espaço para um cuidar que estrutura a si e ao outro, numa clareza da fragilidade que edifica a potência. Celebrar, afinal, o cuidado com a nitidez de que agarramos com vivacidade este tempo partilhado e que sim, há que saber chorar e rir da desgraça.

A Morte senta-se connosco e é Luzidia. Faz companhia e traz saber e sensibilidade onde mais ninguém atreve. Atravessa a neve. É candeia na noite cerrada enquanto movemos as mãos com dedicação sem ver sequer o caminho.

Sentamo-nos com ela num banco de ossos baixinho. Bacia que nos pariu, que nos lava a alma, que nos encaminha.

Candeia de uma fé sem destino fixo ou objectivo final que não o de continuar tecendo Amor.

É porque a Morte se senta connosco à Ceia que a mesa é tão farta e cheia.

É o que temos. E isso é tanto.

Tanto que me vejo acolher o legado: é a mim que me cabe cuidar agora a ceia para quem esteve, para quem está e talvez, sobretudo, para quem virá a seguir e me irá sobreviver.

Porque quero que tenham a mesma mesa farta e coração ardente nas mãos que eu recebi, de tantas formas perfeitamente imperfeitas.

Se há coisa que vem com a crueza desta Terra é o saber que não esmorecemos com quem parte mas nos fortalecemos porque existiram e que a sua memória perdure pelas nossas mãos candeia acesa, nesta e em todas as ceias.

Para citar este artigo:

GARCIA, Íris. A Morte tem lugar à mesa. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/a-morte-tem-lugar-a-mesa/, número 57, 2025

Os meus lutos e lutas estão-me cravados na pele e nas entranhas, como rugas e sendinhos, porque amo, amei, sou e fui amada de forma única a cada momento.

Que mais havemos de pedir?

Não trocava o luto pela felicidade eterna, que nada haveria para aprender aí e eu ainda agora comecei a caminhar, tenho tanto que saber sentir até ser chão.

Sou pagã e serrana na mesma medida, é claro que honro os mortos.

Sou lusitana e visto de negro mesmo se coberta por outras cores, é esta a que me cobre o coração. Mantenho os laços com quem está do outro lado do Rio, do Véu.

Íris Garcia

Íris Garcia

Colunista e Autora regular da Revista

Sou a Íris. Sou Mãe, Terapeuta e Educadora Psico-Somática, Formadora de Fertilidade Consciente, Yoga Terapeuta, Doula, Mulher Medicina, Herbalista, Artista de Dança, Autora, Investigadora e ecologista. As minhas linguagens primeiras são a Natureza, a escrita e o movimento. Caminho, danço e escrevo desde que me recordo. O que me move é a vontade de cultivar equilíbrio sistémico a partir do respeito pela Natureza intrínseca de cada pessoa e sua experiência íntima e única,  em inter-conexão com as suas relações humanas e naturais, desde o lugar do corpo em proximidade orgânica com a Terra Viva.

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