Mil-em-Rama
Coluna de Maristela Barenco
2 MIN DE LEITURA | Revista 56
Realdear o mundo – a força da Comunidade
Em um tempo fortemente influenciado por marcadores como sucesso pessoal, desempenho, competição e individualismo… estamos esquecendo a força histórica, política, existencial do viver coletivo. A Comunidade constitui uma das categorias que vêm sendo invisibilizadas, mas que é central, sobretudo quando pensamos em processos de mudanças e transformações.
Ainda que existam muitas experiências próximas, no que tange à força da Comunidade, gostaria de narrar uma experiência mais distante geograficamente e no tempo, relativa a uma comunidade francesa de tradição huguenote[1], na região de Auvergne, próxima à fronteira com a Suíça, chamada Le Chambon-sur-Lignon que, durante a Segunda Guerra Mundial ficou conhecida por sua proteção aos judeus perseguidos. Acho importante narrar uma experiência incomum, que exatamente porque de nós se distancia, não pode ser capturada com sentidos que lhe tirem a força.
Conta-se que durante a Segunda Guerra Mundial, numa Europa dominada pelos nazistas e perseguindo e exterminando milhares de judeus, uma comunidade francesa de três mil agricultores e aldeões, de tradição huguenote, decidiram dar abrigo e proteção aos judeus foragidos. Durante 4 anos abrigaram e salvaram entre 3 a 5 mil judeus, quase o dobro de sua própria população, sendo que a maioria eram crianças. Logo o governo de Vichy tomou conhecimento do que se passava e, pressionados pelos nazistas, investiram contra Le Chambon. A comunidade, organizada, escondia os judeus nos campos até que as tropas se fossem. Quando a situação estava calma, a população de Le Chambon ia ao campo, cantando uma canção, que era a senha para que as pessoas deixassem tranqüilos os seus esconderijos.
Quando os nazistas assumiram a região, a Gestapo fez uma investida, capturando algumas crianças que foram conduzidas ao campo de extermínio, juntamente com lideranças locais. Uma delas foi o Dr. Roger Le Forestier, liderança local. Mas os aldeões não cederam. Um comandante militar alemão chamado major Schmehling, comovido com o depoimento do Dr. Le Forestier, em seu julgamento, tentou persuadir o chefe da Gestapo, coronel Metzger, da impossibilidade de se investir contra aquela população e seus intentos, já que percebia que aquele tipo de resistência nada tinha a ver com violência, com nada que pudesse destruir por meio da violência.
Aos poucos, a coragem dos aldeões foi comovendo as autoridades que passaram a fazer vistas grossas, mesmo diante das ordens nazistas. Embora o coronel da Gestapo não tenha se convencido, o major Schmehling, durante o tempo que seguiu a guerra, procurou atrasar a execução dos planos.
Muitos anos mais tarde, entrevistados sobre tamanha coragem, os aldeões, já idosos, não atribuíam méritos às suas práticas e demonstraram agir da única forma que se deveria agir. O pastor local, Roger Darcissac disse que tudo aconteceu de forma bem simples. Fizeram o que humanitariamente teriam que fazer.
Experiências como a de Le Chambon são quase incompreensíveis em um mundo que abriga guerras hediondas, que impactam sobretudo mulheres e crianças, cujos detalhes estão na time line de nossas redes, mas não nos interrompem. Mas também nos fala de uma força tão incrível que até mesmo o nazismo, ali, diante dela, não conseguiu destruir.
Então, podemos afirmar: a Comunidade é uma categoria política e terapêutica fundamental, capaz de empreender o inimaginável. E talvez, aqui, gostaria de dizer o mais importante. Uma Comunidade é capaz de sustentar processos de transformação e mudança. Porque temos hoje idealizado e traçado múltiplas linhas de fuga em relação aos territórios de opressão e de destruição da vida, mas não temos conseguido sustentar esses processos. Le Chambon nos remete a essa força, durante um longo período de tempo, e com todas as forças de repressão. O ideário ali, não pertencia a pessoas e indivíduos, mas a uma Comunidade. E quando um ideário se sustenta por muitas mãos, sistemicamente, ele tem uma força que quase não se consegue explicar. É por isso que algumas mudanças só são capazes de acontecerem sob a ambiência de uma Comunidade. O modelo planetário de conexão em rede, que temos experimentado, ainda é tênue. Haveremos de criar outros tipos de rede, no influxo daquelas, buscando menos consolidar muralhas identitárias, mas, sobretudo, disseminando os sentidos da palavra Comunidade.
[1] Nomenclatura que designa a forma como os protestantes franceses, sobretudo os de tradição calvinista, nos séculos XVI e XVII, eram denominados por seus inimigos.
Para citar este artigo:
BARENCO, Maristela. Realdear o mundo – a força da Comunidade. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-56/realdear-o-mundo-a-forca-da-comunidade/, número 56, 2024
Aos poucos, a coragem dos aldeões foi comovendo as autoridades que passaram a fazer vistas grossas, mesmo diante das ordens nazistas. Embora o coronel da Gestapo não tenha se convencido, o major Schmehling, durante o tempo que seguiu a guerra, procurou atrasar a execução dos planos.
Maristela Barenco Corrêa de Mello
Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais
Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.
Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF
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E-mail: maristelabarenco@gmail.com