A Casa Da Floresta

Coluna de Élia Gonçalves e Patrícia Rosa-Mendes

3 MIN DE LEITURA | Revista 56

Os lugares do paradoxo

O frio instalou-se nos últimos dias. Uma humidade gélida que se entranha nos ossos e me faz tremer mesmo debaixo das mantas.  Há uma necessidade de quietude que batalha com a exigência dos dias. O corpo anseia pelas horas de sossego, pela leitura e pela lareira. Mas a vida não pára e as tarefas permanecem, sem complacência ou simpatia.

Nestes despertares matinais em que a vida me chama, abrigo-me com roupa quente e observo o mundo num despertar muito mais lento do que antes. O outono que finda, com as suas chuvadas, vendavais agrestes e frias geadas despertam-me lugares paradoxais e doridos.

Sem dúvida que, nas últimas semanas, tenho vivido paisagens diversas.

Um coelho bebé cuja mãe morreu de mixomatose, e que tentei salvar com biberão, calor e amor. Morreu a meio da noite. Quando me ergui para lhe aquecer o leite, como faria com um filho, senti-o frio sob as minhas mãos.

A perda de um bebé de quem cuidei com tanta dedicação levou-me a um choro sentido, com o meu coelhinho bebé nos braços, nas horas que antecedem a aurora.

Uma dor que se foi recolocando enquanto lhe cavava uma pequenina cova e o entregava à grande Mãe que tudo acolhe. Este momento, simples, cru e fugaz, foi de alguma forma sanador, sem que haja palavras passiveis de o justificar.

Dias mais tarde, encontrei um outro coelhinho, já com algumas semanas, com os mesmos malvados sintomas de mixomatose.  Sabia o que ia acontecer, mas ele já estava afastado dos irmãos e não tive como não o levar para casa. Ninguém deveria morrer sozinho.

Por isso, enquanto trabalhava naquela tarde, mantive o meu coelhinho bem quente, nos meus braços, limpando-lhe o nariz e sussurrando-lhe amor até que partiu.

Ontem, numa outra ninhada com três semanas, dei-me conta de um coelhinho com os membros de trás imobilizados. Tenha nascido assim, problemas no parto ou algum acidente com a mãe, a verdade é que a cria desloca-se mal, chora quando os irmãos lhe passam por cima e tem poucas hipóteses de viver.

Num primeiro impulso tirei-o da ninhada, a minha salvadora interna ávida de o resgatar.  Pego-lhe, falo baixinho, acaricío-o e começo e inventar silenciosamente formas de o manter quente e nutrido.

O outro lugar vem mais tarde. Um pensamento efémero de que provavelmente perderei outro bebé nos braços.  Que de alguma forma ele se alimentou até então. E de que a vida será sempre mais sabia do que eu e se ele tiver de perder esta batalha, será a essa mesma vida a acontecer, seja isso o melhor ou não.

As vozes gritavam dentro de mim, em profundo conflito, quando o voltei a juntar à ninhada, não sem um sentimento de dor e tristeza profunda.

Pois a grande certeza é de que a vida segue caminho, independentemente do tanto que faço para a controlar. A vida é soberana, nos seus portais de nascimento e morte, na regeneração de si mesma, na mudança das estações.  A vida é paradoxal, e nela habita o visível e o invisível, quer estejamos despertos para isso ou não.

Assim como a noite e o inverno se instalam, com tanto a despertar debaixo da terra, e a noite mais escura traz o regresso da luz e do crescimento dos dias, vai-se-me entranhando a noção de que nem sempre as minhas mãos podem salvar o que não me pertence, nem sequer aquilo que é meu. Não era, naturalmente, uma ideia nova, mas esta nova rotina tecida no meio da natureza e de ritmos tão diferentes e ténues, envia-me mudanças celulares, tão duras por vezes, que doem. Mas, ao mesmo tempo, avassaladoras e reestruturadoras de partes de mim.

No meio de tanto que me abala, não deixo de contemplar os medronheiros repletos de fruto vermelho, doce e sumarento, que vou apanhando nas minhas caminhadas. A terra que se vestiu de trevos verdejantes que dançam com a brisa ao longo do dia. O rio que corre pleno de vivacidade depois das chuvadas e de tantos meses de secura.

Recordo a lebre que corria à minha frente, em ziguezague, numa noite de lua cheia. Os sapos que vou encontrando a atravessar a estrada, em direção aos riachos, sempre que está a chover.

Nestes tempos frios e mais escuros, a luz e o calor do fogo despertam-me a sacralidade e o silêncio.  Uma maior gratidão no saborear das bebidas quentes ou da doçura dos diospiros.

Quando o Inverno vem, o Mistério está presente e convida-me a sentar. Permanecer com o que há, olhando de frente as minhas mitologias pessoais e trazendo-as para a luz. Uma parte de mim esperneia, ansiando por uma clareza e simplicidade fantasiosas, talvez, mas controladas.

A outra parte, aquela que desperta com os vendavais e se reconhece igualmente selvagem, entende as mudanças agrestes e o paradoxo dos dias. Há um profundo respeito pela vida que acontece.

Talvez seja esse o meu lugar do inverno, o sagrado que me acorda, o mistério que me abana, a esperança que me guia,  quando me volto a habitar, sem recurso a distrações e devaneios.

A vida transforma-se e é soberana. E eu, com as minhas dores, dúvidas e maravilhamentos, faço parte da teia e transformo-me, como a geada, os trevos ou os rios que correm. E, provavelmente, com todos os lugares pequeninos e tímidos, belos e esperançosos de vida, que crescem invisíveis debaixo daquilo que se vê.

Para citar este artigo:

GONÇALVES, Élia; ROSA-MENDES, Patrícia. Os lugares de paradoxo. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-56/os-lugares-do-paradoxo/, número 56, 2024;

Assim como a noite e o inverno se instalam, com tanto a despertar debaixo da terra, e a noite mais escura traz o regresso da luz e do crescimento dos dias, vai-se-me entranhando a noção de que nem sempre as minhas mãos podem salvar o que não me pertence, nem sequer aquilo que é meu. Não era, naturalmente, uma ideia nova, mas esta nova rotina tecida no meio da natureza e de ritmos tão diferentes e ténues, envia-me mudanças celulares, tão duras por vezes, que doem. Mas, ao mesmo tempo, avassaladoras e reestruturadoras de partes de mim.

Patrícia Rosa-Mendes

Patrícia Rosa-Mendes

Terapeuta Transpessoal

Instrutora de Meditação
Formadora na EDT – Escola Transpessoal
Tradutora
Contadora de Estórias
Mitologia – Arte – Eco-psicologia

Autora do Livro A Loba à Espera.

Patricia.mendes@escolatranspessoal.com

Élia Gonçalves

Élia Gonçalves

Colunista e Autora regular da Revista

Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal

Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia

elia.gonçalves@escolatranspessoal.com