artigo de Maria Trincão Maia

Friolo, o dragão

3 MIN DE LEITURA | Revista 56

Friolo tinha nascido há muitos séculos, sabia de cor todo o terreno que o abraçava. Conhecia as gentes daquelas terras, viu povos passarem, uns ficaram outros partiram. Chegaram a ser dezenas como ele, quando o mar banhava a serra. Mas os milénios passaram, o mar arredou. Friolo agora era o único dragão, amado durante anos por todos, ajudava todos os mamíferos, répteis, ouvia o cantar das pedras e a dança no leito do rio. Não era um dragão enorme, tinha um tamanho normal, gostava de se aninhar a dormir perto de um rio. Ali era o seu sítio, não incomodava os humanos que por lá viviam, que lhe compunham a casa sempre que necessário. Era uma convivência simpática, harmoniosa. Às vezes nas tardes ensolaradas, deixava que as crias dos humanos escorregassem pela sua cauda, que os coelhos se escondessem dos linces e lobos. Lançava fogo quando necessário para a terra renascer, ria-se das labaredas que, por vezes, não muito certas do que estavam a fazer acabavam na água. Eram espíritos independentes dele, embora fosse ele que os gerasse. Lembra-se de uma vez uma labareda mais atrevida lhe ter queimado a cauda, e ele ter-se irritado. Mas Friolo era da espécie dos dragões mais pacíficos que existiam e ele era particularmente calmo.

Os séculos continuaram a passar e Friolo percebeu que os humanos tinham começado a mudar de hábitos, que chegavam notícias de que o tempo se tinha reiniciado e havia novas formas de contar. Friolo questionou-se sobre o que se tinha passado, mas o tempo para os humanos sempre correra de forma diferente. Tinham vida curta. Então vários hábitos ele viu mudar. Porém… esta mudança pareceu-lhe diferente. Certo é que Friolo era um dragão isolado de todos os outros e muito pouco sabia do que se passava para além das serras que guardava. Sabia que vivia tão deslocado das grandes rotas de dragões que não estranhou quando os seus companheiros deixaram de aparecer, ele era um dragão da terra, da sua terra. Mas o seu coração apertava com o passar do tempo e Friolo agitava-se. Percebeu o afastamento dos humanos de si, só já os anciãos conseguiam falar a sua língua. Ele voou, voou até à grande rota dos dragões para saber notícias. E poucos foram os dragões que encontrou.

Friolo confirmou o que temia, os humanos tinham mudado e já não conseguiam ouvir os dragões, já não reconheciam a sua sabedoria… Agora eram visto com a encarnação do “mal”, percebeu que agora as coisas se diferenciavam entre bem e mal e que haveria sempre lutas contra estas duas novas palavras que os humanos seguiam.

Friolo regressou ao seu rio e a sua casa, não gostava do que tinha percebido. E a sabedoria dizia-lhe que estava na altura de descansar, de hibernar. O seu coração pesava pelos humanos, eram criaturas engraçadas, com aqueles corpos frágeis, mas capazes de cuidar da terra. Ele gostava dos humanos, mas os humanos estavam cada vez mais surdos. Os anciãos reuniram-se perto dele, as árvores abraçavam com as suas raízes o seu corpo. E o pacífico dragão anunciou que iria hibernar até poder voltar, mas não se ia esconder em nenhuma gruta, em nenhum lugar. Ia ficar ali, perto do seu rio. O tempo o cobriria e os humanos iriam deixar de vê-lo. Friolo despediu-se e aninhou-se. Fechou os olhos grandes e amarelos, e o corpo cinzento escamoso agora assemelhava-se a uma pedra.

Os séculos foram passando e nem a mais velha árvore se lembrava dele. Mas as raízes, que o aninharam uma vez, continuavam a aninhá-lo, o solo foi-o cobrindo e de rochedo passou a ser terreno. Um monte, onde novas árvores cresceram, onde nova vida começou a existir. Friolo no seu estado de dormência sentiu com tristeza o caudal do seu rio descer e quase desaparecer. Volta sazonalmente quando as águas caem do céu e se juntam com as águas subterrâneas para juntas lembrarem o seu antigo caminho, mas a vida desse lugar mudou. Sentiu o esquecimento dos humanos da sua origem, sentiu-o quando mataram quase todos os dragões. Sentiu a ignorância a reinar e sentiu o desamparo de tudo o que rodeava. Os humanos esqueceram-se. Há pouco tempo sentia duas crias humanas que subiam e desciam por si a cima, sem se darem conta de que ele estava debaixo do solo que pisavam. Divertiam-se a rebolar pela encosta a baixo, a explorar o terreno e a encontrar tesouros imaginários. Apanhavam flores e descobriam árvores. Viam cobras e viam coelhos, corriam com os cães e gatos por entre as ervas e riam-se durante os dias quentes de verão.

Friolo gostava daquelas crianças, parecia que quase o viam, mas como qualquer humano estas crianças cresceram e esqueceram-se do tempo em que rebolavam por ele a baixo e do tempo em que quase o podiam ver.

Friolo continua na sua espera, ele tem o tempo todo da terra porque ele é também a Terra, se os humanos se lembrassem podiam saber de onde vem. Friolo continuava a cuidar da sua terra, dos mamíferos, repteis, insectos e plantas. Cuidava até das duas crias humanas que agora são humanos porque sabia que aquelas crias podiam cuidar dele também…só precisavam de se lembrar.

Para citar este artigo:

TRINCÃO MAIA, Maria. Friolo, o dragão. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-56/friolo-o-dragao/ ,número 55, 2024

Sentiu o esquecimento dos humanos da sua origem, sentiu-o quando mataram quase todos os dragões. Sentiu a ignorância a reinar e sentiu o desamparo de tudo o que rodeava. Os humanos esqueceram-se.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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