Biografia dos Dias sem Princípio
Coluna de Inês Peceguina
7 MIN DE LEITURA | Revista 56
Desorganismo
parte II
Ao que parece, quanto mais pequena a pessoa, piccolo corpo, menor ou menos intensa a (sua) dor. Supomos. E quanto mais pequena a criança, mais tempo tem para se esquecer disso tudo. (Dizemo-nos). Ou seja, para além da tendência que muitos de nós adultos temos para subestimar ou minimizar a dor na/da criança, acresce ainda a tendência para considerar que, por ser pequena, e porque nós, que já somos grandes, pouco nos lembramos de ser assim pequenos, como o Rodrigo, provavelmente não nos vamos lembrar de nada do que aconteceu. Assumimos que quanto mais criança é a criança, menor a sua habilidade para construir uma memória que perdure. E sem memória, é como se nada tivesse acontecido.
Contudo, ao contrário desta lógica de tamanhos, o que acontece é que, quanto mais criança é uma criança, ou seja, quanto mais nova e imatura, mais o registo das experiências (quaisquer experiências) se faz a partir das âncoras do mundo pré-verbal, que é um mundo maravilhoso, pré-conceptual, onde tudo e todos são novos e experimentados com a novidade das primeiras vezes. E esse é também um mundo para onde é difícil regressar quando as experiências que temos foram grandes, gigantes, assustadoras, dolorosas. Incompreensíveis. Inexplicáveis. E, assim, quando uma criança vive estas coisas muito cedo (e todas vivem em algum momento e durante algum tempo), estes colapsinhos emocionais, até “não se lembrar”, nem sempre é ligeiro e nem sempre passa sem deixar cicatrizes.
O Rodrigo pode não ser capaz de lembrar-se, com palavras, e argumentos lógicos, com sequências de pensamento causal. Mas o seu corpo, esse, raramente (se) esquece. O seu corpo, o corpo do Rodrigo, vai guardar delicadamente todas as experiências da sua vida. Toda a vida que ele organiza dentro de si. Em imagens, em sensações, em emoções que, com o tempo, se não forem devidamente reconhecidas e cuidadas, podem transformam-se em unhas roídas, pequenos tiques que nos habituamos a ignorar, medos irracionais (fobias), pesadelos (que são sonhos que que não fomos capazes de resolver), personalidades fortes, que não são mais do que armaduras muito antigas para proteger uma pele que ainda não sabia como abrigar-se, tão cedo teve de aventurar-se num mundo, para si, demasiado hostil.
No caso do Rodrigo, esta hostilidade emerge da ausência de referências afetivas, referências físicas, a navegação do espaço por onde ele movimenta o seu corpo, os seus pés, as suas mãos, o seu olhar, e a navegação do espaço interno, por onde ele se movimenta com os recursos que é possível ter aos 5 anos.
Não é o fim do mundo Rodrigo, nós sabemos. E vai passar. No dia em que fizeres um(a) amigo(a), no dia em que tu e o(a) teu(tua) amigo(a) inventarem juntos uma brincadeira, o dia em que sais a correr e teu corpo já sabe, automático, para onde vai(s), o dia em que já te esqueceste do ritmo do tempo e nem viste que o dia passou inteirinho e nem uma respiração-arrepiada Rodrigo, nem um peito tremido das saudades da mãe, nesse dia, vai ser bom.
As relações são o que nos protege. É por isso que quando começa um novo ano, ou quando acontece uma grande mudança na vida de uma pessoa, sobretudo se a pessoa for uma criança, e ela tem de descobrir tudo sobre aquele novo sítio e sobre os que já lá estavam antes dele chegar, seria importante, mesmo importante, que se reconhecesse, nós que somos adultos, e que temos experiência, mais experiência, que a melhor forma de gerir a mudança, é reconhecer que é difícil sim. A melhor forma de ajudar o Rodrigo e as outras crianças que como o Rodrigo estão em colapso emocional mais ou menos entre a partir das 8:30, quando o portão da escola parece a entrada para as catacumbas, seria bom que a escola falasse sobre isso (e não apenas os pais, os que falam). Falarem sobre isso. Dedicar um tempo dilatado ao assunto. O que for necessário para cada um. Talvez trazer os que já lá estão há mais tempo e que se lembram e não se importam de contar como foi a sua experiência.
Sentirmo-nos acompanhados nestes momentos não torna o momento menos difícil. Não por si só. Mas passar por momentos difíceis sem eco nenhum, de bolsos emocionais vazios, é sempre pior.
Precisamos disso. O Rodrigo precisa disso. Não apenas dos pais, que ao virar costas seguem também em pequenas ruínas, geríveis, ainda assim, mas dos outros adultos, os adultos da escola que serão, em breve, corra tudo bem, adultos de referência.
O nosso desenho animal é complexo, elegante e delicado. Também é robusto e resiliente sim. Foi desenhado para procurar a proximidade, para o apego. Não é um desenho apenas humano. É mais antigo. Se separarmos um cria da sua mãe, seja ela uma criança pequena, um cão, ou um gato, qualquer um deles protesta. Se a separação for curta surge essa reclamação emocional, uma tentativa de repor a proximidade, o contacto. Se a separação for longa, surge o estado fisiológico do desespero (Bowlby, 1973). Se este estado se prolongar – separação abrupta e prolongada – estão criadas as condições para um choque somático (Lewis et al., 2000). Todo o sistema entra em colapso. Interrompe-se a função cardiovascular, a resposta imunológica e a regulação dos níveis hormonais. Neste extremo que, sabemos, não é o que está a acontecer com o Rodrigo, todo o organismo de desorganiza.
Desorganismo.
O corpo adoece (e aqui corpo é total, incluí a mente). A rotura dos relacionamentos pode causar doenças, tanto como as bactérias e os virus.
E mesmo sem ser extrema, a separação desorganiza sempre um pouco o corpo. Ao que parece, a melhor forma de recalibrar este estado, é através das relações. Causa e efeito. Vão ser precisas novas relações na escola nova Rodrigo.
E quando já tiveres amigos e amigas, ou um só, parece que o que faz mesmo diferença é ter um(a), vai ser mesmo muito melhor. Porque agora, durante alguns dias, semanas, talvez, a nova escola seja um ecossistema emocional onde só vivem coisas perigosas, cheio de ameaças e sem refúgios.
A solução para o eterno enigma da confiança surge como banal e profunda — simplesmente a prática de refinar continuamente nosso discernimento sobre o caráter e cultivar relacionamentos íntimos. Não chegas tu, Rodrigo.
A auto-suficiência, referem Lewis e os seus colegas (2000), é uma fantasia dos adultos para quem voltar a sentir esse estado de colapso é insuportável. O que tu precisas, agora, é de não estar sozinho, e de encontrar, aí dentro, pessoas que te ajudam a regular o que tu sentes. Fica perto dessas pessoas.
Eu penso que ajudaria se a escola tivesse pessoas só para isso. Assim nos inícios. Pessoas que estão ali para os colapsinhos emocionais. Para que não se transformem em colapsos, choques somáticos. Para que não tenhas de encher a tua mochila de defesas do ego. São importantes claro, e servem para isso mesmo. Mas se não te sentires assim tão ameaçado, então não precisas das defesas. Não é? O problema das defesas é que depois, tantas vezes, as ameaças deixam de existir, mas as defesas ficam…
Não é o fim do mundo. Tomara que todas as dificuldades de todas as crianças da tua idade fossem essas, Rodrigo.
Mas, e isto é importante, podia ser um mundo melhor para ti e para as outras crianças que também estão a passar por isso, se pudéssemos, como sociedade, ir cuidando destas coisas. Com intenção, com tempo, sem juízos de valor, sem comparações com os irmãos, ou com outras crianças da mesma idade que nem olham para trás.
Se tu, aos 5 anos, fosses para uma escola nova e te adaptasses instantaneamente, gelly-ja, isso sim, seria muito preocupante. Porque seria evidência de que o teu sistema de apego não tinha apego nenhum. Evidência talvez de já teres desistido. Uma criança auto-suficiente, é uma criança que já não conta com ninguém.
Não queremos isso.
Eu, pelo menos, não quereria.
Por isso, chora à vontade, tenta voltar para casa na curva quando já se vê o portão. Pede que te expliquem mais uma vez que isto é passa, vai passar. Pede que te contem, como foi, quando a mãe e o pai tiveram de se separar e isso era difícil. Pede mais um abraço. É normal estares triste, zangado, não perceberes ainda muita coisa. É esperado que te sintas assim. O que não é nada esperado, no sentido do que é saudável, equilibrado, maduro, experiente, é que se assobie para o lado, que se faça de conta, que não se diga nada e, ao não dizer nada, se deixe a criança sozinha a encontrar significados e lógicas para tudo o que ela sente e que sente que não consegue suportar sozinha. Sobretudo porque as crianças têm este hábito de encontrar nelas a razão. Talvez seja um castigo. Talvez já não gostassem dele na outra escola. Talvez se tenha portado muito mal.
Ele chama-se Rodrigo. Tem 5 anos. Não tem sido fácil. Isto não é a Dinamarca.
Mas felizmente que os seus pais conseguem vê-lo e lhe dão a mão e o colo, e recebem as suas mágoas que o seu pequeno corpo não consegue digerir sozinho. Esta função foi descrita na literatura como contenção (Bion, 1962) e, de forma simplificada, acontece quando os cuidadores percebem e acolhem esse estado, contendo a experiência emocional. Por outras palavras, o cuidador metaboliza esse afeto, que a criança não consegue organizar ou digerir sozinha, e devolve-o numa quantidade que é tolerável e que pode ser apropriada pela criança. A contenção acontece através do olhar, da voz, do contacto físico. O cuidador acolhe o corpo da criança. A mãe do Rodrigo acolhe o seu corpo. Pega-lhe ao colo, abraça-o, ao mesmo tempo que lhe diz que sabe que é difícil, que sabe que ele está triste e assustado, e que está ali para ajudar a resolver. Inventam um ritual de despedia e ela diz-lhe que para ela também é difícil. O Rodrigo não está sozinho, está num nós. Pouco a pouco, consegue gerir o que sente, arrumando as emoções que o vão ajudando a sentir-se capaz (porque alguém digere com ele).
O Rodrigo tem 5 anos. O seu colapsinho emocional é seu. E não pesa menos. Só porque ele ainda é pequeno e, possivelmente, um dia vai mesmo lembrar-se pouco disto. Não por ter crescido, ou por se ter esquecido, mas porque houve um eco. Fora do lugar escola-catacumba mas, ainda assim um eco.
O Rodrigo, 5 anos. E hoje Rodrigo? O que é que te faz feliz?
Referências
- Arnheim, R. (1966). Toward a Psychology of Art: Collected Essays. University of California Press:
- Bion, W. R. (1962). Learning from Experience. Karnac Books.
- Bowlby, J. (1973). Attachment and loss, vol. 2: Separation: Anxiety and anger. Basic Books.
- Chollet. D., Turner, A., Marquez, J., O’Neill, J., & Moore, L. (2024). The Good Childhood Report 2024. The Children’s Society.
- Helliwell, J. F., Layard, R., Sachs, J. D., De Neve, J.-E., Aknin, L. B., & Wang, S. (Eds.). (2024). World Happiness Report 2024. University of Oxford: Wellbeing Research Centre. https://happiness-report.s3.amazonaws.com/2024/WHR+24.pdf
- Koch, A. B. (2018). “Children’s Perspectives on Happiness and Subjective Well-being in Preschool”. Children & Society, 32, 73-83.
- Lewis, T., Amini, F., & Lannon, R. (2000). A general theory of love. Random House.
- Piaget, J. (2013). Mental Imaginery in the Child: Selected Works. Routledge.
- Simonton, D. K. (2000). Creativity: Cognitive, personal, developmental, and social aspects. American Psychologist, 55, 151. http://doi.org/10.1037//0003 066X.55.1.151
Para citar este artigo:
PECEGUINA, Inês. Desorganismo – parte I. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-55/desorganismo-parte-1/ , número 55, 2024
O Rodrigo tem 5 anos. O seu colapsinho emocional é seu. E não pesa menos. Só porque ele ainda é pequeno e, possivelmente, um dia vai mesmo lembrar-se pouco disto. Não por ter crescido, ou por se ter esquecido, mas porque houve um eco. Fora do lugar escola-catacumba mas, ainda assim um eco.
O Rodrigo, 5 anos. E hoje Rodrigo? O que é que te faz feliz?
Inês Peceguina
PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação
Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.