Ciclos da Terra e da Alma

Coluna de Íris Lican Garcia

3 MIN DE LEITURA | Revista 56

Às vezes é so um fio

 

Só um fio nos segura.
Queremos toda a tecelagem, mas ela jaz desfeita dentro e fora de nós.
Sim, o tempo é de colapso.
Há luto, luta, fome. Há medos sem nome que nos falam de um lugar de memória profunda, sentida mas não lembrada.

A nossa geração teve uma bênção que também toca, como todas as bênçãos, a condenação.
Crescemos à beira de dois mundos distintos:
O mundo ancestral, arcaico, da família rural, com avós e/ou bisavós que viviam da mesma forma que os seus antepassados, com poucas mudanças em séculos, milénios.
O mundo moderno, industrial e agora tecnológico, sem tempo, onde a pouca terra pouca terra do comboio a vapor prenúnciou a pouca terra que ainda nos sobra santa e sã.

A casa da minha bisavó era de pedra. Xisto vivo e negro. A escada de madeira que unia o rés do chão ao primeiro andar, de madeira. Cada passo fazia estremecer o chão. A casa tinha uma sala, dois quartinhos que foram morada de 4 filhos. Uma cozinha no rés do chão, negra da foligem, sem janelas, com borralho ao meio e panelas de 3 pés que já sabiam cuidar sozinhas do caldo e da couve. Uma loja para as cabras, um sótão sequeiro para batatas, feijão, farinha, sementes. Para o ano inteiro.
Ficava no vale, entre a Pampilhosa da Serra e o Fundão. Santa Luzia era celebrada erguendo – se dos massissos ossos de pedra da meseta ibérica, Serpente que atravessa montanhas e é mais do que fronteira, é mais do que as nações que atravessa, é a espinha dorsal de um tempo que é lugar e por isso passa sem passar, é continuidade.

A casa da minha avó era de pedra. Xisto negro. O meu avô construía paredes e muros. Ainda hoje lá estão. Na Ribeira de Sendinho, que é a Ribeira do caminho e do destino, ao mesmo tempo.
Era um lugar, não uma aldeia. Ali, numa casa com uma sala e um quarto, partidos foram 13 filhos. No caminho entre Oleiros e Fundão, antes de haver estrada. Hoje, as paredes que o avô ergueu perduram de pé, mas não há ninguém e já nem há caminho para chegar. Sulcamos as silvas, a urze e de repente, ouvimos as vozes de ontem como se ainda lá estivessem. De repente, eu que sou lisboeta, oiço até compreender a memória que ali fala e conta o porquê de tantas coisas terem sido como foram.

Tudo começa em algum tempo, em algum lugar.

As sensações e emoções são uma linguagem, sem ela não acedemos ao significado do que precisamos de resgatar.
A Teia vem-nos quebrada.
Há partes que nunca serão senão fios soltos, mas até esses fazem parte da aberta e ampla coerência do propósito.
Se não sabemos de onde viemos, não temos como saber para onde vamos.
Porque, vistas ou não, as vivências compõem e habitam-nos. Escuta – las é luto: seja porque a dor tem lugar, seja porque o romantismo também cai.

Ver a vida da minha bisavó, Maria, ajudou – me a que fosse claro que podemos viver sem electricidade, canalização, dinheiro. Mas não podemos viver sem afecto, água, chão para cultivar.
Ter a dimensão da miséria não nos pode impedir de resgatar a tremenda e milenar resiliência que nos é sangue. Acredito que a maioria de nós, como eu, tenha nobreza no coração mas nenhum outro título herdado.

Saber viver de e com a Terra não é fácil.
Mas acaso as nossas vidas actuais o são?
O trauma da miséria é da fome fez-nos barrica em casas maiores do que precisamos, rodear-nos de objectos sem função, preencher de distração o nosso tempo.
Morremos sem ter vivido.
A nova religião é o entretenimento e o dogma da ciência, porque a nossa vulnerabilidade nos é insustentável.

Até quando?

A fome nunca deixou de existir, o nosso comodismo fomenta-a.
Para cuidar a fome há que perceber que estamos famintos na alma.
Quebrou-se a continuidade da vida, da memória, da evolução que emerge da cooperação entre sistemas e relações que se tocam, que tocamos, que nos tocam.

Hoje, penso na cozinha negra de foligem da minha bisavó.
Olho o meu filho, comovida, lembro :
Nunca te esqueças, se perderes todas estas coisas que tens, poderás ter sau. Mas para viver, o que precisamos de facto é :

Amor
Ar
Água
Alimento
Abrigo

Leva uma destas qualidades em cada dedinho da mão. Não dês a tua vida em troca de objectos que não te servem.

Lembremos que há capacidades que estão no coração, vindas desses vales, cozinhas negras onde o fogo consola, não há excesso, mas há o suficiente.
O suficiente é bastante, é a maior bênção porque não traz o preço do desequilíbrio.

Às vezes é só um fio, e há desolação, porém um fio é sempre o começo de toda a Teia da Vida.
Só isso é necessário : sabermos que diante o luto da perda se revela sempre o recomeçar e a continuidade.
Que seja então como a sabedoria, a cura e a oração : não necessariamente o que queremos, mas definitivamente o que precisamos.

Avó, vê: trago a tua cesta nas mãos.
Com ela colho o que me dá o chão: a cura que emana da morte também é nutrição.

Para citar este artigo:

GARCIA, Íris. Às vezes é so um fio. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-56/as-vezes-e-so-um-fio/, número 56, 2024

Às vezes é só um fio, e há desolação, porém um fio é sempre o começo de toda a Teia da Vida.
Só isso é necessário : sabermos que diante o luto da perda se revela sempre o recomeçar e a continuidade.
Que seja então como a sabedoria, a cura e a oração : não necessariamente o que queremos, mas definitivamente o que precisamos.

 

Íris Garcia

Íris Garcia

Colunista e Autora regular da Revista

Sou a Íris. Sou Mãe, Terapeuta e Educadora Psico-Somática, Formadora de Fertilidade Consciente, Yoga Terapeuta, Doula, Mulher Medicina, Herbalista, Artista de Dança, Autora, Investigadora e ecologista. As minhas linguagens primeiras são a Natureza, a escrita e o movimento. Caminho, danço e escrevo desde que me recordo. O que me move é a vontade de cultivar equilíbrio sistémico a partir do respeito pela Natureza intrínseca de cada pessoa e sua experiência íntima e única,  em inter-conexão com as suas relações humanas e naturais, desde o lugar do corpo em proximidade orgânica com a Terra Viva.

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