artigo de Raquel Berndt
Arte e Rios
[Parte I]
4 MIN DE LEITURA | Revista 56
O avanço urbano sobre a floresta e o apagamento dos cursos fluviais naturais
No ambiente capitalista urbano, onde o concreto se ergue como um testemunho do progresso, existe um conflito emergente que merece nossa atenção. Trata-se do conflito entre o avanço urbano, ansioso por estender suas fronteiras, e a natureza que perde espaço. No cerne desse embate, os elementos da floresta, outrora imponentes, agora encontram-se espremidos entre edifícios de concreto e estruturas de aço. Conscientizar as pessoas sobre essa perda gradual, muitas vezes invisível no tecido urbano, é uma tarefa que exige uma abordagem multifacetada.
Adentrando no conceito de ecologia, pode-se citar o pensador indígena Ailton Krenak, que discute sobre a origem desse conceito e seu significado na sociedade. Para o autor, o termo ecologia foi criado pelos brancos, como uma forma de categorizar um pensamento intrínseco para muitas culturas que vivem em harmonia com a floresta, entendida como a natureza em si. Ele entende que para quem vive na floresta, a ecologia “é floresta viva a respirar e a inspirar” (KRENAK, 2018, p.1). A floresta, nesse contexto, deve ser entendida não apenas como um meio de subsistência, mas também como “suporte para a materialidade e a espiritualidade da existência, da cultura e da produção/reprodução da subsistência” (p. 1).
Nesse contexto no qual a natureza é vista como algo separado do ser humano e a ecologia é transformada em mercadoria pelo sistema capitalista, a arte se destaca como uma voz poética e provocadora, capaz de evidenciar a difícil relação entre cidade e natureza. Arte e ecologia andam juntas no sentido que o pensamento ecológico transcende os estudos científicos, ou seja, está relacionado com filosofia, cultura, literatura e todas as formas artísticas. Mas principalmente, a ecologia está ligada à coexistência (MORTON, 2023).
O início do conflito
Vivemos em uma sociedade na qual há inúmeras metrópoles e historicamente o planejamento urbano tem visado o conforto e a estética para os humanos. As civilizações humanas, desde os primórdios, se aglomeram próximo a corpos d’água (BENEVOLO,1999). Entretanto, com a evolução da sociedade urbana e o conceito de cercamento de território, a noção de propriedade sobre os cursos dos rios e córregos surgiu na mente humana. Talvez por ser um dos elementos essenciais para a vida humana, os corpos d’água foram sendo incorporados nas cidades enquanto a fauna e flora de suas margens foram empurradas cada vez mais para longe.
Uma boa forma de compreendermos a relação histórica entre cidade e natureza é analisando a animação de 2020, Wolfwalwers dirigida por Tomm Moore e Ross Stewart, que retrata uma vila irlandesa em desenvolvimento no século XVII, e que para poder continuar aumentando seu território entra em conflito com os seres da floresta. Neste filme, há entidades chamadas de wolfwalwers, seres humanos que ao dormir se transformam em lobos. Apesar de ser uma obra fantasiosa, aborda um contexto histórico real e importantíssimo para o entendimento da sociedade capitalista contemporânea, o filme retrata como povos pagãos tinham uma relação diferente com a natureza.
No minuto 34:32 da animação é possível ver uma representação aérea da cidade (Figura 1), onde se nota não só o cerceamento desta, como sua proximidade ao rio. Em três pontos diferentes, vemos intervenções humanas nesse rio, podendo ser pontes ou até mesmo outras estruturas de controle sobre esse corpo d’água, que como retratado tinha diversas funções, oferecendo recursos e rotas de transporte. A obra em questão é um excelente exemplo de uma narrativa com inúmeras camadas de interpretação. Pode-se dizer que este filme é uma representação de diversas cidades que se desenvolveram durante os séculos XVI e XVII no continente europeu.
Figura 1 – Minuto 34:32 da animação WolfWalkers, 2020. [Foto: Captura do filme Wolfwalkers, 2020.]
O final da animação retrata os wolfwalkers e a alcateia de lobos se retirando dos arredores dessa cidade, mesmo que tivessem conseguido “salvar” a área do perigo iminente. Esse final só corrobora com a narrativa capitalista de retirada de espécies de seus habitats naturais para a expansão dos centros urbanos, com um discurso de que há outro local para a sua transferência. Ailton Krenak, em seu texto intitulado Ecologia Política, aborda a violência colonial que rompe com o conceito de coletivo e constrói a individualização, resultando na percepção da natureza separada do sujeito e não como um suporte de vida (KRENAK, 2018). Apesar de a obra analisada ser uma produção europeia, é essencial relembrar o contexto histórico e político irlandês. Na própria animação somos confrontados com essa realidade quando os personagens ingleses ridicularizam as crenças populares dos aldeões, instigando a violência e o apagamento da cultura popular.
Entidade em meio ao descartes
Em relação ao avanço urbano sobre a floresta, Uýra Sodoma, artista visual, cria diversas obras. Porém, sua produção artística extrapola esse conceito, pois aborda identidade, gênero, pertencimento, coexistência e outros incontáveis
conceitos. Emerson Pontes é Uýra Sodoma. Em seu texto “O que fazer após o fim? Recriar-se”, publicado em 2022, afirma:
Sou gente, mas às vezes viro árvore. E ela anda. Esta é Uýra, que gosto de chamar carinhosamente de Árvore que Anda. Meu espírito a compreende como entidade, com que convive, e que às vezes utiliza meu corpo como suporte, o guiando, provocando e protegendo. Como um canal de fala e escuta, Uýra habita a paisagem híbrida dos opostos. É onde coisas como a cidade e a floresta se encontram: se completando ou tensionando (PONTES, 2022, pg. 35)
Suas obras “Mil [quase] Mortos” de 2018 (Figura 2) e “Boiúna” de 2019 (Figura 3) são exemplos de produções da artista que denunciam a realidade atual urbana, na qual os rios são consumidos pela cidade, pelo capitalismo humano, pelos descartes e necessidades modernas. Quando não estão escondidos pelo asfalto, estão em decomposição, extremamente poluídos e lutando para manter os ecossistemas aquáticos vivos.
Figura 2 – “Mil [quase] Mortos”, 2018 2 [Foto: Matheus Belém]
Figura 3 – “Boiúna”, 20193 [Foto: Matheus Belém]
Pontes demonstra, através de sua persona artística, a importância de conhecer e denunciar a realidade vivenciada pelos rios que transpassam comunidades humanas que seguem o modo de vida capitalista. Uýra, árvore que anda, evidencia a presença viva nos rios, em meio aos plásticos e sujeiras, se apresentando nas margens poluídas como protesto e denúncia de nossa relação contemporânea com as águas que nos cercam. Segundo a artista, o rio pulsa forte pois se move e tem história, se encontra porque está conectado, e assim como nos, tem memória ancestral, que nunca morre (PONTES, 2022).
2 Foto disponível em: <https://www.premiopipa.com/uyra/>.
3 Foto disponível em: <https://www.premiopipa.com/uyra/>.
Para citar este artigo:
BERNDT, Raquel. Arte e Rios, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-56/arte-e-rios/, número 56, 2024;
Uma boa forma de compreendermos a relação histórica entre cidade e natureza é analisando a animação de 2020, Wolfwalwers dirigida por Tomm Moore e Ross Stewart, que retrata uma vila irlandesa em desenvolvimento no século XVII, e que para poder continuar aumentando seu território entra em conflito com os seres da floresta. Neste filme, há entidades chamadas de wolfwalwers, seres humanos que ao dormir se transformam em lobos. Apesar de ser uma obra fantasiosa, aborda um contexto histórico real e importantíssimo para o entendimento da sociedade capitalista contemporânea, o filme retrata como povos pagãos tinham uma relação diferente com a natureza.