O Cântico dos Cânticos

Coluna de Amala Oliveira

4 MIN DE LEITURA | Revista 56

A ciência dos amores

 

Lembro-me de, na escola secundária, aluna de artes, revelar fotografias em estúdio e ver aparecer rostos no meio dos líquidos como se fossem assombrações, fantasmas rarefeitos a coagular no meio de uma luz vermelha difusa e misteriosa. Como que por magia, pura química. Alquimia.

Nas feiras de velharias gosto de encontrar retratos antigos e imaginar as histórias, sonhos, desafios, percursos e narrativas daquelas pessoas há muito mortas. Intrigam-me particularmente os seus amores e desamores e dou por mim a tentar adivinhar sinais e disposições nas posturas, olhares e hierarquias.

Às vezes, penso que encontro uma linda história de amor. Numa postura mais descontraída, num jeito de olhar brilhante ou num tocar de mãos discreto e irresistível.

E pergunto-me de que ciência alquímica se farão os amores. Como reconhecer o Amor com letra grande nesta sociedade plastificada, com corações de emoji e rosinhas virtuais? Será que o coração humano ainda bate com a coragem de amar intensamente?

Por sorte ou azar no jogo do viver, sou mulher sensível que ama muito. Da pedrinha da calçada aos amantes para a vida toda. E às vezes, raras, encontro mesmo um Grande Amor.

E não, não sei se são os karmas, os dharmas, os akáshicos ou o raio que o parta. Só sei que É, no primeiro instante de ligação. Como um farol no meio do nevoeiro.

Oiço os ecos de alma algures num pontinho sensível no coração e no fundo da cabeça vejo os fragmentos de imagens ou sensações reverberadas dentro, como se fossem fotografias mal reveladas ou diaporamas gastos pelo tempo.

Estes grandes amores carregam sempre os melhores prazeres e as maiores dores, as que nos trazem crescimento, entendimento, e um bocadinho mais de iluminação do propósito individual.

Nem sempre nos atrevemos a sustentar tanta responsabilidade. Nem tanta esperança.

E o que fazer quando o grande Amor se divide, quando aparece em mais do que aquilo que o enredo tradicional de convenções permite? Como fazer a multiplicação de dádivas não se sendo o profeta com os cestos de pão?

Diz-nos Ram Dass que o aspecto mais importante do Amor (com letra grande) não está no dar e receber: está no SER-se amor. Na nossa cultura, pensamos e vivemos o amar como algo relacional e de carácter transacional – eu dou-te e tu dás-me, eu amo-te e tu amas-me. Mas embora o ego seja construído em torno da relação, a alma não o é. Quer apenas SER amor.

Nas relações humanas, há fios que nos entrelaçam de forma delicada e outros que nos prendem como algemas invisíveis, moldadas por séculos de dogma e convenção. O poliamor, na sua essência, surge como uma dança de almas livres que recusam ser confinadas ao estreito molde da posse e da exclusividade. É um sopro de transgressão, um retorno aos valores primordiais da comunhão, onde o amor não se mede pelo volume da entrega, mas pela fluidez do sentir.

A não monogamia ética, como um rio que bifurca em mil braços sem jamais perder a sua origem, desafia a ordem arbitrária da escassez sentimental. Amar mais do que uma pessoa, amar sem fronteiras, torna-se um acto revolucionário contra a visão reducionista do/a outro/a como propriedade. Não se trata de menos amor ou diluição do amar mas sim de uma multiplicação generosa, onde cada laço traz novos espelhos e novas paisagens à alma.

Contudo, no meio desta libertação, surgem os demónios interiores: o ciúme e a sensação de traição, criaturas obscuras nascidas da sombra do ego e nutridas pelo medo da substituição. O ciúme é uma voz ancestral, uma resposta primitiva que busca assegurar a permanência do amor no território do previsível. É o lamento da parte de nós que ainda teme a própria insuficiência, um grito da criança que receia ser deixada para trás.

Os ciúmes comunicam mais da vulnerabilidade individual do que da história acontecida ou a acontecer do outro lado. A quantos dos nossos próprios sentimentos de comparação, julgamento, medo de rejeição ou abandono atribuímos a função de legitimar palavras e actos de agressividade, manipulação ou ataque? Pretensamente em nome do Amor?

Quando contemplamos o ciúme como ele é, sem adornos, podemos vê-lo como uma estratégia psíquica de auto-boicote, um ardil delicado através do qual se reprime a verdade dos nossos próprios desejos. Criar narrativas de traição ou insuficiência, no seu âmago, nada mais é do que uma tentativa inconsciente de anular aquilo que desperta o mais intenso desejo de liberdade: o reconhecimento de que o amor pode ser vasto, múltiplo e ilimitado, como o cosmos que o inspira.

O sentimento de traição numa relação não monogâmica revela o conflito entre o desejo por expansão e o apego ao conhecido. O que trai, de facto, não é o outro, mas a própria imagem ilusória que construímos de controlo e exclusividade. Amar de maneira plural exige pois um desnudamento profundo, onde os véus do medo são arrancados com honestidade e coragem.

Por detrás desse labor alquímico, encontramos a verdadeira dádiva: o reconhecimento de que o outro não nos completa, mas nos transborda. Amar sem posse significa compreender que a abundância reside em cada encontro e que cada pessoa amada traz um universo único à mesa de nossa existência.

A prática consciente do poliamor é, portanto, um acto de profunda maturidade emocional e espiritual. Exige o cultivo da confiança radical, não apenas na outra pessoa, mas em nós também – a certeza de que somos dignas e dignos de amor, independentemente das comparações ou dos medos que ecoam nas nossas cavernas interiores. É a coragem de ver o amor como uma fonte que jamais seca, de onde bebemos sem o tentar aprisionar.

Na travessia deste caminho, o ciúme transforma-se de carrasco em mestre. Ensina-nos onde doem as nossas feridas, onde sangram as nossas inseguranças. O sentimento de traição, quando dissecado, revela o desejo reprimido de amar mais e de se ser mais livre. Pois, afinal, o que há de mais grandioso do que reconhecer que o amor, na sua forma mais pura, é uma oferenda e não uma transacção? Que amar é soltar, não prender. Que amar é ser, e não ter.

Desengane-se quem ache que o poliamor é fácil, uma distração ou fuga à responsabilidade nas relações. A gestão da incerteza e da vulnerabilidade particular de cada pessoa é um tecer delicado que requer verdade, comunicação, flexibilidade, escuta receptiva além do visível e muita paciência.

Sei que todos e todas nós estamos a afectar o mundo a cada momento, consciente e inconscientemente, quer queiramos quer não. As nossas acções e estados mentais são importantes, pois estamos profundamente interligados uns aos outros. Trabalhar a nossa própria consciência é assim a coisa mais importante a fazer e SER-se Amor pode ser o derradeiro acto criativo supremo.

Sonho acordada com a possibilidade de nos tornarmos vastos e vastas como o céu, em eterna abertura à chegada e partida de cada estrela, a ouvir a sinfonia do cosmos. Pois o amor, quando livre, torna-se o único espaço onde a alma pode, finalmente, dançar.

Para citar este artigo:

OLIVEIRA, Amala. A ciência dos amores. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-56/a-ciencia-dos-amores, número 56, 2024

Na travessia deste caminho, o ciúme transforma-se de carrasco em mestre. Ensina-nos onde doem as nossas feridas, onde sangram as nossas inseguranças. O sentimento de traição, quando dissecado, revela o desejo reprimido de amar mais e de se ser mais livre. Pois, afinal, o que há de mais grandioso do que reconhecer que o amor, na sua forma mais pura, é uma oferenda e não uma transacção? Que amar é soltar, não prender. Que amar é ser, e não ter.

Amala Oliveira

Amala Oliveira

Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator

Sou Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator, pioneira da Sexualidade Sagrada em Portugal, vivendo-a e partilhando-a como um caminho de devoção, cura e revelação.
Investigo o Paganismo e Xamanismo Ibéricos, tendo sido iniciada na Bruxaria Tradicional Portuguesa pela minha mãe. Sou Buscadora de Visão, Temazcalera e Guardiã de Fogo Sagrado pela linhagem da Abuela Margarita.
Herbalista aprendiz do mestre alquimista Juan Plantas nas plantas mágicas e medicinais da Península Ibérica, sou a fundadora do projecto SAGRAR e autora do Oráculo dos Animais da Península Ibérica.