Ciclos da Terra e da Alma

Coluna de Íris Lican Garcia

3 MIN DE LEITURA | Revista 55

Tender ao lume

 

Começaram por nos cortar e queimar os Bosques, sob os quais nos sonhavam os ancestrais de outrora.
O fogo que devorou o Bosque Sagrado e desmantelou a pedra da montanha para fazer templos já prenunciava que também quem cultuava o Bosque ia sofrer o corte e a queima.
Antes de serem sentidos no corpo, já toda a Alma se nos quebrava em luto diante do impensável.
Ainda assim, fora das urbes, no coração dos montes, penhascos e nascentes as gentes Ibéricas mantiveram o seu saber velado e persistente, desde a noite dos tempos.
Não lhes chegou a todos nem a inquisição, nem o padre, e dobraram a linguagem para sobreviver cuidando que se não perdesse jamais o manto de profundidade mais antiga do que o tempo que lhes dava forma a si e à vida.
Cantaram e oraram com afinco, ritualizaram na calada da noite e ao nascer do Sol.
Passaram na sua simplicidade absoluta o seu sentir e saber, a quem tivesse olhos para ver.
Mesmo se lhes levavam os filhos para o outro lado do mar a servir uma riqueza que jamais seria sua e nunca serviria senão uns poucos. Mesmo se o tempo era duro e frio, mesmo se o manto do medo e da dor tantas vezes lhes cobria os dias.
Lembro o dia em que conversei com Pat McCabe, Woman Stands Shining da nação Diné de Turtle Island (actual EUA). Falámos sobre o estreita relação entre as sistemáticas colonizações sobre os povos indígenas europeus e a inquisição como martelo final dessa ancestralidade que teimava em não se deixar vergar. Falámos de como a violência, a tortura, a morte cruel, a servitude feudal foram sistemas de destituição da pertença à Terra. De como os homens ao perder avós, mães, mulheres e filhas e se sentirem impotentes e incapazes de as proteger perderam a alma e se tornaram máquinas subservientes de guerra. De como estes homens foram partidos por dentro e obrigados por servitude a partir em barcos onde ou morriam ou matavam para enriquecer elites.
Ela disse-me que na sua visão os olhos deste homens eram brancos e secos, como se andassem mortos em vida.

E chorámos abraçadas, numa dor profunda e dilacerante que atravessa povos e persiste em ferida aberta.
Não poderemos nunca falar em colonização europeia sem endereçar a inquisição, sem lhe reconhecer os danos vastíssimos.

Findos os tempos inquisitoriais a que conseguiram sobreviver por se julgar a sua simples ignorância e a sua profundidade superstição, o que nos dá que pensar sobre a arrogância do olhar, eis que lhes chega o progresso.
Pela mão da ditadura perdem os Bosque finalmente, e os rios, e a descendência.
Pautado a recursos, indústria, tecnologia e ciência o que restou foi queimado e cortado até ao chão. Do Carvalho e da Azinheira que lhes davam sombra e pão vem o pinheiro para sangrar, e o sangue que se lhes derramou por uma guerra que nunca foi sua.
Viram nascer capelas e crucifixos em todos os penedos e nascentes sagrados e agora tinham que se curvar diante de uma imagem humana onde outrora o mistério lhes atravessava a alma.
Foram proibidas as suas últimas danças, canções e dialectos.
E chamaram-lhe progresso e identidade nacional, quando lhes levaram as terras para fazer minas e estradas, para lhes esventrar as entranhas e lhes retirar do chão as plantas medicinais com que se benziam e curavam desde a noite dos tempos.
Ignorantes e simplórios, diziam.
E forma embrutecendo porque desconsagrar o Bosque é condenar a Alma ao purgatório, sim, mas aqui mesmo.

Ver arder a montanha e represar a betão o rio é dizer-nos que a nossa Terra de pertença morreu e que já não há esperança. O nosso ser e saber ancestral não tem lugar nem razão e ficar à mercê de qualquer bandeira que se nos ofereça.
E porque é tudo normal e até foi o melhor, cá seguimos com a dor sem se ver e o Bosque coberto a escravatura, desta vez de eucalipto.

Queimar o Bosque é sempre renovar a queima dos povos pagãos. Os indígenas europeus que na sua múltipla diversidade étnica se vêem destituídos de local de origem e orientação há milénios.
Uma doença fatal que criou sensos de identidade falsos e tóxicos.

Quem de nós arde traz na boca o sabor a cinza e a vontade imensa de cuidar a Floresta e o seu culto, porque já não aguentamos mais a insistência de ser quem não somos e desta destruição.
Algures no tempo teria que prevalecer essa rebeldia que faz o fogo arder.
Algures no tempo o nosso grito seria fundamental a dar voz ao sentir ancestral de equilíbrio que nos impele a existir com dignidade na Floresta como princípio da vida e centro da comunidade.

Algures no tempo não haveria como não tender ao fogo e voltar a abraçar a sua sacralidade.
Sagrado fogo profanado por doentios intentos.
Hoje, ardemos porque somos fogo e assim nos comprometemos a cuidar a chama. Chama que não incendeia tão pouco esmorece, do que jamais poderá perecer.

Para citar este artigo:

GARCIA, Íris. Tender o Lume. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-55/tender-ao-lume/, número 55, 2024

Quem de nós arde traz na boca o sabor a cinza e a vontade imensa de cuidar a Floresta e o seu culto, porque já não aguentamos mais a insistência de ser quem não somos e desta destruição.
Algures no tempo teria que prevalecer essa rebeldia que faz o fogo arder.
Algures no tempo o nosso grito seria fundamental a dar voz ao sentir ancestral de equilíbrio que nos impele a existir com dignidade na Floresta como princípio da vida e centro da comunidade.

 

Íris Garcia

Íris Garcia

Colunista e Autora regular da Revista

Sou a Íris. Sou Mãe, Terapeuta e Educadora Psico-Somática, Formadora de Fertilidade Consciente, Yoga Terapeuta, Doula, Mulher Medicina, Herbalista, Artista de Dança, Autora, Investigadora e ecologista. As minhas linguagens primeiras são a Natureza, a escrita e o movimento. Caminho, danço e escrevo desde que me recordo. O que me move é a vontade de cultivar equilíbrio sistémico a partir do respeito pela Natureza intrínseca de cada pessoa e sua experiência íntima e única,  em inter-conexão com as suas relações humanas e naturais, desde o lugar do corpo em proximidade orgânica com a Terra Viva.

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