No Espetro – Neurodiversidade

e Justiça Social

Coluna de Fátima Marques

Neurodiversos - Todos neuróticos todos diferentes com Fátima Marques

Neurodiversos - Todos neuróticos todos diferentes com Fátima Marques

21 de Novembro - 19h30 - 21h00

 

A Revista Vento e Água convida-vos para mais um Chá de Urtigas ancorado por uma das nossas queridas colunistas, Fátima Marques. Fátima Marques escreve a coluna No Espetro – Neurodiversidade e Justiça Social, e é fundadora dos projectos Co.Mover.Se e Saúde para Todos.

Segue o link para te registares neste evento.

5 MIN DE LEITURA |Revista 55

Qual é o poder da Honestidade?

 MÁSCARAS

 

Ela tinha a pele azul 

E ele também, 

Ele escondeu 

E ela também. 

Procuraram o azul 

Toda a sua vida, 

Passaram um pelo outro, 

E nunca souberam. 

 

Shel Silverstein 

 

O meu trabalho foca-se na recuperação das redes de apoio e no conhecimento que todos precisamos destas redes de apoio para florescer e fluir. 

As abelhas precisam de viver numa colmeia, as aves têm bandos. Todos nós seres vivos temos a situação ideal para a qual o nosso organismo está preparado e sem essas condições não conseguimos florescer. Muitas vezes não conseguimos sequer sentir-nos minimamente bem. Os humanos precisam de comunidade.

É impossível não ver que tanta gente estar a precisar de medicação só para conseguir gerir o dia a dia não pode ser um problema individual. Há um problema maior sistémico, no qual é importante trabalharmos a nossa posição individual, mas também é importante compreender que há coisas que nos ultrapassam. 

O que nos impede de confiarmos uns nos outros? O que nos impede de cuidarmos uns dos outros como é a nossa natureza?

Uma das razões é a falta de honestidade. Sem honestidade é impossível a comunicação e é impossível avançar em conjunto. É impossível uma comunidade evoluir e resolver problemas. Se alguém me pergunta, estás com frio? E eu tenho frio mas digo, “ah não”, ninguém vai fechar a janela. 

Enquanto não passarmos informação adequada, é impossível perceber quais são as nossas necessidades individuais e coletivas e é impossível responder-lhes. Pode ser que pareça estranho que a honestidade seja um poder, parece que é guardarmos a verdade para nós que nos dá poder, mas o poder que nos dá guardar a verdade é um poder sobre os outros, o poder de contar a verdade, é poder sobre nós próprios.

 

O que significa honestidade?

 

Em que situações é que dás por ti a mentir? O que é que estás a evitar quando mentes? O que é que evitamos quando mentimos? 

Mentir é um comportamento que exige trabalho, esforço, e qualquer ser vivo tenta fazer o mínimo esforço. Se nós mentimos com tanta frequência tem que haver uma motivação forte, não é? E esta é uma pergunta que eu vos faço. O que é que é honestidade para ti? 

Não estamos aqui a falar de honestidade em termos gerais, mas da honestidade da maneira como comunicamos às outras pessoas as nossas necessidades e a nossa própria identidade.

Dá-te uns segundos para respirar, olhar para dentro e pensar, ok, porquê que eu minto? Porque é que às vezes finjo com as pessoas que me são próximas? Da última vez que eu disse uma coisa que não era bem a verdade, o que é que eu tinha medo que acontecesse? O que é que eu estava a proteger? 

É fácil acharmos que os outros não vão conseguir lidar connosco, é fácil achar que não podemos dizer o que sentimos, o que pensamos e isso cria imensos problemas, problemas que talvez tenham solução. 

Enquanto tentamos parecer uma coisa que não somos para ser aceites e amados, acontece exatamente o oposto: isso isola-nos das pessoas que são como nós, que pensam como nós e que sentem como nós e que poderiam compreender-nos. Isola-nos das pessoas que procuramos e que procuram por nós.

É este o drama da dificuldade em sermos honestos acerca de quem somos. É que para agradarmos às pessoas a quem não agradamos, deixamos de encontrar as pessoas com quem não teríamos que nos esforçar. 

 

Gosto da frase da Clarissa Pinkola Estés que diz que os segredos são assassinos da alma. 

 

Quando escondemos coisas das pessoas que amamos e às vezes até de nós próprios, estamos a rejeitar partes. Se invisto esforço para criar uma fantasia nas outras pessoas a meu respeito, estou a matar a parte da minha alma que é autêntica e que não corresponde a essa imagem que imagino que os outros gostariam de ter de mim. 

Eu, por exemplo, tenho muita dificuldade com o tempo. Se estou atrasada e a pessoa à minha espera pergunta “Então, onde é que estás?” E eu me atrasei e estou em casa, mas digo que estou a meio do caminho, é mesmo daquelas mentiras que não têm sentido nenhum, mas mostra a minha angústia e a minha vergonha em relação à dificuldade de gestão do tempo. Então, como é que isto cria barreiras?

Se minto, isso cria um ciclo. Se digo que estou no Rossio e estou nos Anjos, as pessoas podem perguntar “Mas tu já estavas aqui perto, porque é que demoraste tanto? “ E eu digo outra mentira “Estava tanto trânsito, deve ter havido um acidente.” Para tapar a primeira mentira que às vezes foi dita sem pensar, vou ter que construir uma outra história para não dizer “Olha menti não estava realmente onde eu disse que estava.” 

 

Já te aconteceu este tipo de mentiras que depois levam a outras? 

 

Isto cria barreiras porque nos faz sentir culpados, envergonhados e por aí fora.

Impede os outros de nos conhecerem e também nos deixa acompanhados, porque as pessoas estão lá connosco, mas na verdade sozinhas, porque estão lá, mas nós estamos tão ocupados a fazer esta seleção do que dizer, o que não dizer, que não estamos realmente lá. 

Normalmente estas mentiras não são para ganharmos uma vantagem ou para conseguirmos ser mais espertos que alguém. É a sensação de que se formos verdadeiros podemos ser excluídos, podemos não ser amados. Queremos defender-nos de julgamentos.

Falta saber quais são as nossas reais necessidades, às vezes escondemos tanto que escondemos também nós próprios, às vezes dizemos “sim, tudo bem, eu não me importo”, “sim, isto está bem para mim”, e depois, no fim, ressacamos, porque não estava nada bem, não era nada bom, era demais, ficamos zangados, irritados, cansados, ou ansiosos. 

 

Como podemos gerir isso? 

 

Acho que qualquer das pessoas que está a ler não está a começar hoje, nem ontem, eu também não, e ainda assim às vezes, a distância entre a teoria prática é muita, então aqui eu vou, convidar para darmos um passo. 

Pode ser um micro passo, pode ser um passo de formiga, não importa, mas mesmo que seja um passo de formiga vai sempre fazer alguma diferença, vai sempre trazer alguma mudança. Porque há esta coisa que nós temos de ficar na cabeça, na informação. Há tanta informação e a informação só por si não muda nada, vale muito pouco.

 

Podemos saber perfeitamente o que é que está mal, mas se não dermos um passo, não tem que ser no mesmo dia, nem na mesma semana, às vezes nem no mesmo mês, ,mas, se não dermos um passo numa direção que nos possa trazer alguma coisa de bom acabamos por não mudar nada.

 

Convido-te a escolher uma pequena cosia que tens estado a esconder de alguém próximo, e contar. Abre uma nesga do teu coração. E vê o que acontece. Não comeces com uma coisa assustadora, começa com a coisa mais pequena que encontrares, começa com uma pessoa segura. Começa numa bicicleta com rodinhas. 

E atenção, há pessoas com quem não é seguro ser honesto. Não abras o coração a quem tem uma faca na mão. 

Experimenta e depois conta-me o que aconteceu. 

Um grande abraço para ti que leste até aqui! Desejo-te muitas boas aventuras na exploração dos poderes da honestidade. E que este caminho te leve a sentires-te uma pessoa mais ligada, mais segura, mais inteira.

 

(este texto é parte do Webinar “O Poder da Honestidade” que é parte do Ciclo “O Poder da Comunidade”)

 

Para citar este artigo:

MARQUES, Fátima. Qual é o Poder da Honestidade? Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-55/qual-e-o-poder-da-honestidade/ , número 55, 2024

É normalmente estas mentiras não são para ganharmos uma vantagem ou para conseguirmos ser mais espertos que alguém. É esta necessidade, esta sensação de que se formos verdadeiros podemos não ser incluídos, podemos ser excluídos, podemos não ser amados. Temos medo de não ferir e magoar. Queremos defender-nos de julgamentos, ou sentir-nos incluídos..

Fátima Marques

Fátima Marques

Fundadora dos projetos Co.mover.se e Saúde Para Todos.

Acredita no potencial curativo
de trazer à luz as dinâmicas
ocultas dos relacionamentos, e
na transformação dos ciclos de
violência em ciclos de empatia.

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