O Cântico dos Cânticos

Coluna de Amala Oliveira

4 MIN DE LEITURA | Revista 55

Oração dos Guardiães da Terra

 

Somos muitas e muitos os que caminham com os pés despertos, peregrinando em direcção ao único futuro possível para a humanidade. Ouvimos o chamado da Terra, os sofrimentos, gritos e desolações da Natureza e dói muito cá dentro.

E será provavelmente esse o maior combustível que nos impulsiona a viver em consciência deste Todo Maior do qual fazemos parte. Somos uma ínfima e poderosa porção de expressão vivente, os humanos que veem o Divino nas árvores, nas águas, no canto dos passarinhos, no delicado bater de asas da borboleta e que vivemos a fazer diferente, o melhor que sabemos e conseguimos. Com responsabilidade, sonho e fé.

Há dias em que só me apetece chorar. Tenho vergonha de ser humana. Vejo na amiga raposa que me visita um ser muito mais evoluído do que certos políticos da nossa praça. Que tomam decisões sem o meu consentimento que me/nos afectam tanto. Peço-te perdão querida amiga e aos outros animais do bosque.
Todos os dias peço perdão. Todos os dias rezo por consciência, por mudança, por visão. Abram os olhos, minha gente! E há dias em que perco a esperança, em que o desânimo me descora a alma.

Depois vem um sopro do castanheiro, um beijo da folha que cai do carvalho, um observar as formigas a reservar atarefadas as últimas provisões de inverno, o caracol bonito que passa no seu tempo mágico. E comovo-me com tanta beleza, com tanta Vida sagrada, com a poesia que não cabe em palavra alguma.

E volto à labuta. Faço parte das guerrilhas verdes de gente com unhas encardidas, cicatrizes na pele e pés descalços. Que recolhe bolotas para germinar em vasos. Que tem plantas medicinais para não contribuir para o império das farmacêuticas. Que composta os seus cocós para não contaminar lençóis freáticos. Que recebe gente para rezar no fogo, na água, no bosque por mais consciência. E se às vezes me parece que é tudo em vão, que é só uma ínfima migalhita num oceano tão grande, tão pesado e destruidor, outras me encontro num entendimento profundo de que tenho de continuar. Sinto-me prenha de Espírito Verde. E se tiver de ser como um caracol, é com muito orgulho que assim sigo caminhando. Devagar, humildemente, com a Casa-Mãe-Terra às costas. Com antenas e tudo.

O corvo crocita e chama-me ao serviço. É hora de recolher as bagas. Querido amigo, sempre atento. Envio uma palavra de gratidão e começo a trabalhar. Sinto a presença da cobra que me observa de mansinho e pergunto-me se terá encontrado o seu lar de sempre para passar o inverno. Espero que sim, quem não quer ter um ninho confortável para dormir?
Encontro paz nestas tarefas simples e cheias de poder, uma serenidade preciosa que me enche de luz e de um sentimento de reverência. Em cada baga que colho, recito uma prece em silêncio, emolduro um sentimento, transmito uma dádiva de mim. Sempre a reciprocidade, o respeito e o reconhecimento do Ser a quem colecto frutos. Mais tarde aqui virei ofertar o meu sangue menstrual. Aprendi há muitos anos que quando oferecemos o nosso sangue lunar à terra devolvemos fertilidade à natureza. A nossa energia fértil funciona como um elixir balsâmico para que, de alguma maneira, possamos proporcionar equilíbrio ao tanto que sacamos Dela. O mais íntimo e sagrado de mim, força da criação do meu próprio ventre, para Ti que nos nutres, nos sustentas, nos susténs e nos alimentas.

Eu vejo-Te Grande Mãe Deusa Natureza Terra, eu sinto-Te, eu honro-Te. E aqui Te canto uma oração:

Ó Grande Mãe, Deusa Terra,
santuário dos ventos e ventre das águas,
no teu seio repousam os mistérios da vida,
a pulsar no coração de cada ser que caminha, rasteja ou voa,
que cresce silencioso nas sombras ou floresce ao toque do sol.

A ti, guardiã dos segredos,
rendemos homenagem em profundo respeito
pois dos teus eternos ciclos brota o alento dos fungos,
o sussurro dos micróbios,
as plantas que brotam no escuro,
e o espírito selvagem que anima os animais.

Que saibamos ouvir a tua voz sagrada
no murmúrio das folhas, no silêncio da terra
e que, como crias humildes do teu ser,
caminhemos com reverência,
honrando a vida em todas as suas formas
que em ti encontram o seu começo e o seu fim.

Guia-nos, Mãe Terra,
para que honremos cada ser,
cada fio da tua vasta teia
e saibamos viver com leveza,
como guardiães gratos de teu sagrado corpo
e da vida invisível que tece a trama do mundo.

Para citar este artigo:

OLIVEIRA, Amala. Oração dos Guardiães da Terra. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-55/oracao-dos-guardiaes-da-terra/, número 55, 2024

É hora de recolher as bagas. Querido amigo, sempre atento. Envio uma palavra de gratidão e começo a trabalhar. Sinto a presença da cobra que me observa de mansinho e pergunto-me se terá encontrado o seu lar de sempre para passar o inverno. Espero que sim, quem não quer ter um ninho confortável para dormir?

Amala Oliveira

Amala Oliveira

Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator

Sou Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator, pioneira da Sexualidade Sagrada em Portugal, vivendo-a e partilhando-a como um caminho de devoção, cura e revelação.
Investigo o Paganismo e Xamanismo Ibéricos, tendo sido iniciada na Bruxaria Tradicional Portuguesa pela minha mãe. Sou Buscadora de Visão, Temazcalera e Guardiã de Fogo Sagrado pela linhagem da Abuela Margarita.
Herbalista aprendiz do mestre alquimista Juan Plantas nas plantas mágicas e medicinais da Península Ibérica, sou a fundadora do projecto SAGRAR e autora do Oráculo dos Animais da Península Ibérica.