artigo de Sofia Batalha

O esqueleto totémico e os contos envoltos em micélio

Mas então qual o envolvimento dos contos com a ecologia?

5 MIN DE LEITURA | Revista 55

Para tecer a investigação-oração da Eco-Mitologia, é fundamental enlaçar o totemismo, como território conceptual e ecológico que sustenta a ligação profunda entre mitos e os múltiplos sistemas vivos. Aqui proponho o totemismo como forma de relação radical.

Para a psique ocidental moderna, este paradigma é um esqueleto do tempo profundo, esquecido e coberto de cinzas e terra, envolto em micélio antigo, misturado entre raízes e carcaças de criaturas apodrecidas. No entanto, o totemismo, surpreendentemente, ainda está vivo nas franjas e cavidades das nossas relações, ainda o vemos pelo canto do olho.

Nas relações totémicas entre as comunidades humanas e a ecologia primordial, os mitos são vivos e elásticos, moldados e reinventados em resposta às alterações ambientais. Em particular após o período do Younger Dryas⸺um evento significativo de alterações climáticas que teve impacto nas populações humanas e na sua relação com o mundo natural, (Mann & Kailo, 2023). É importante recordar que as perspectivas ecológicas de longo prazo, pela transmissão intergeracional de tradições e códigos éticos, são possibilitadas pela responsável relacionalidade totémica. Os protocolos sagrados e as instruções práticas são respeitados no contexto do seu impacto nas gerações futuras e alinham-se com os princípios da gestão ambiental. A tapeçaria situada da cultura totémica enfatiza a relação e a interligação inerentes aos seres humanos e à natureza, através da preservação dos laços ancestrais com a terra⸺as histórias são tecidas por identidades colectivas, enraizadas na cooperação, na afetividade e na generosidade responsável não-humana. 

Embora nos refiramos ao período do Younger Dryas como a época em que o totemismo estava vivo na psique eurocentrada, este paradigma de relação ecológica não se refere a uma antiga era romântica passada. O totemismo é um modo de relacionamento através da cooperação e reciprocidade emaranhadas, em profunda responsabilidadegeralmente referida como ignorância supersticiosa pelos colonizadores não autóctones. A sabedoria ecológica totémica contém as relações complexas entre culturas, tradições espirituais, e a natureza⸺o totemismo está sempre emaranhado em ecologias vivas.

O ritual e a narração colectiva de histórias desempenham um papel activo na promoção dos laços de parentesco e identidade, por exemplo no culto de antepassados não-humanos. O totemismo, mediante uma teia de relações animistas, ecoa a linhagem e a identidade do coletivo⸺a pertença recíproca e responsável. Isto não é apenas simbólico, mas também biológico, ecológico, social e político, através dos padrões do clima, das matrizes da geologia e da topografia⸺manifestando uma confiança fundamental num parentesco encarnado, incorporado e espiritual com a paisagem selvagem viva.

O paradigma totemista também inclui conhecimentos práticos sobre o território, não em termos de controlo e domesticação, mas de observação e aprendizagem com os ciclos de plantas e animais, desde rotas de migração e mudanças sazonais. O totemismo, com as suas fronteiras difusas entre os seres humanos e a natureza, segue um modelo diferente das estreitas visões antropocêntricas das sociedades modernas. A adopção de animais, plantas ou fenómenos naturais como antepassados e totens, bem como os rituais e crenças que os rodeiam numa interconexão ecológica sagrada e profunda, é um modo de vida enraizado e emaranhado. 

Histórias de parentesco com escamas, penas, pelo e casca de árvore

Através de relatos orais, as estruturas sociais, o comportamento e a partilha de conhecimentos ecológicos são disseminados ao longo de várias gerações, forjando uma relação íntima entre o totemismo e os contos. O rico conhecimento ecológico local circula como uma espécie biológica, evoluindo através da variação, legado e preferência, tal como as entidades vivas que pertencem a uma rede ecológica de relações. Isto faz dos contos um tecido conjuntivo entre a natureza e a cultura. Os restos da primeva sabedoria ecológica são os fios de micélio que envolvem o esqueleto totémico, nas suas formas corporizadas e colectivas de sentir-pensar ecológico. Se considerarmos que uma análise filogenética do folclore, revelou que os contos comuns podem ter tido origem há cerca de 7000 anos, percebemos quão antigos são estes fragmentos, há muito enterrados, mas não esquecidos.

A narração de histórias eco-mitológicas preserva e promove o envolvimento e participação cultural com o não-humano, moldando estruturas e comportamentos sociais, assegurando a soberania ecológica da comunidade.

Estes contos rituais primordiais podem ter explicado a história de origem do clã ao seu totem, descrevendo em pormenor o antepassado mítico ou o acontecimento que estabeleceu a relação abrangente. O que confere ao totem um significado e uma responsabilidade simbólicos, ecológicos, sociais e sagrados, moldando como o coletivo percepciona e interage com a terra viva. 

São histórias que professam a pertença da comunidade, reafirmando o seu compromisso de transmitir conhecimentos através da interligação das espécies no seu território. Estas práticas entrelaçadas sustentam um paradigma diferente, mantendo também pormenorizadas práticas ecológicas e regenerativas de colheita ou caça, baseadas na teia de relações de parentesco.

Os rituais e contos totémicos afirmam a consanguinidade com os antepassados não-humanos. Assim, todos os descendentes humanos mantêm uma ligação sagrada e uma responsabilidade intergeracional com uma entidade natural. 

Núpcias totémicas e aprender com os animais

Recordamos agora as Mouras, as mulheres híbridas de serpente deste lugar limítrofe, assim como os ecos com a Melusina. Juntamos à nossa massa totémica a D.Marinha e amassamos estas noivas-animais em conjunto com o totemismo⸺lembro que, numa reminiscência de relações totémicas, tanto a Melusina como a D.Marinha são mulheres-animal que fundam clãs poderosos na Europa medieval. Fermentando contos de tempo fundo com sabedoria imprescindível à vivência sazonal.

Nesta paisagem mítica, o casamento engloba uma vasta gama de laços, humanos ou não, referindo-se a uma continuidade porosa entre os reinos humano e não-humano. Nos mitos e contos, o casamento entre um humano e um animal junta o homem à natureza, em comunhão íntima, envolvendo acordos ecológicos mútuos baseados na partilha e no afeto. Articulando relações mais amplas do que apenas as complexidades das políticas humanas de género e sexuais. Quando interpretados por uma lente totémica e animista, os contos de noivos animais podem ser sobre o parentesco com outros antepassados que não os humanos, ultrapassando a fragmentaçãoo rasto da linhagem dos antepassados animais que casaram com um humano. Noivos e noivas animais, animais falantes, metamorfos e compósitos humano-animal, actuam como mediadores ecológicos entre o reino dos humanos e o dos não-humanos.

Nas culturas indígenas contemporâneas, que seguem o paradigma totémico, as núpcias metamórficas cíclicas entre um humano e um animal contam histórias de aprendizagem interespécies.

Por exemplo, o marido castor que ensina a construir, as esposas aranhas ou pássaros que ensinam a tecer, ou os noivos ursos que orientam os parentes humanos na procura das melhores bagas e locais de pesca. Até a maternidade e a sementeira eram imitadas dos animais. Estas histórias totémicas de animais, em que o casamento entre o antepassado humano e o animal estabelece o clã ou a tribo, são recorrentes, pois o tempo não é linear. A criação está sempre a acontecer e estes primeiros criadores, mestres e guias que moldam e preparam o mundo para os humanos precisam de cuidados e cerimónias constantesnas práticas de caça, nas decisões colectivas de sementeira e nos rituais sazonais. 

A partir destes exemplos vivos contemporâneos, ainda que cruelmente corroídos hoje em dia, podemos fabular uma experiência conceptual e viva semelhante, de onde provêm os nossos contos das Noivas Animal. Reconhecendo que, na consciência eurocêntrica, em vez de aprender tarefas práticas, ecológicas e protocolos míticos sagrados de relação, o que resta é o controle, domesticação e o posterior vazio e a ausência, limitados a uma experiência fragmentada centrada no ser humano.

Esta perspetiva moderna e dissociada tende a ignorar as profundidades peculiares, as dimensões não-humanas e ecológicas de cada conto⸺uma antiga descrição mítica do ambiente complexo, relacional e vivo. É claro que os pontos comuns falam dos padrões da psique humana, mas não devemos esquecer as paisagens e as estações mais amplas que rodeiam os nossos corpos primitivos de mamíferos. 

Aqui propomos um desafio à perspectiva antropocêntrica clássica, sugerindo que a história de amor comum entre um Animal totémico, e um humano, é um ritmo cíclico, uma observação recorrente intergeracional, codificada em mito e encantamento. A estrutura mais antiga destes contos pode ter sido cantada cerimonialmente em alturas específicas do ano. É possível que estes contos sejam relíquias de cartografias antigas de mudanças ecossistémicas profundas baseadas no lugar (e não apenas centradas na psique humana), traduzidas em contos populares⸺expressando os ciclos da terra, do clima, dos animais e das plantas através do mito. Por uma perspectiva animada nos fios ecológicos destes contos, o encontro e o abraço amoroso multiespécies poderiam falar do hibridismo e da porosidade necessários para fomentar relações multifacetadas, recíprocas e férteis, que permitem o ‘continuum’ da Vida.

Provavelmente, uma cerimónia de iniciação sagrada, contada através de uma história. Estes contos revelam o paradoxo do nascimento e da morte, uma mistura de conceção-funeral, um rito de passagem, matrimónio e, em última análise, uma morte ecológica e mítica reversível. Podem também conter a memória colectiva profunda do longo caminho de aprendizagem, prática e obtenção de sabedoria para a sementeira, a medicina e a tecelagem. Alguns autores falam da forma como os contos são transmitidos pelas mulheres. Nas comunidades antigas, os contos populares serviam como uma forma cativante de transmitir sabedoria e lições de vida, geralmente de mulher para mulher (Winding, 2004).

Estes contos podem revelar uma consciência mítica quando os humanos podiam casar com outras criaturas, expondo padrões mais profundos de afeto e parentesco de viver-com, impregnados de uma sabedoria ecologicamente complexa.

 

Para citar este artigo:

BATALHA, Sofia. O esqueleto totémico e os contos envoltos em micélio. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-55/o-assunto-das-estorias/, número 55, 2024;

A partir destes exemplos vivos contemporâneos, ainda que cruelmente corroídos hoje em dia, podemos fabular uma experiência conceptual e viva semelhante, de onde provêm os nossos contos das Noivas Animal. Reconhecendo que, na consciência eurocêntrica, em vez de aprender tarefas práticas, ecológicas e protocolos míticos sagrados de relação, o que resta é o controle, domesticação e o posterior vazio e a ausência, limitados a uma experiência fragmentada centrada no ser humano.

Sofia Batalha

Sofia Batalha

Eco-Mitologia e Ecopsicologia; Fundadora e Editora da Revista

Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais. Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.

Certificada em Ecopsicologia e Mitologia Aplicada pela Pacifica University, nos EUA. Identifico-me como pós-activista, fazendo parte do Advisory Board da The Emergence Network.

*Homenagear hystera. Recordar a capacidade de resposta. (des)aprender em conjunto.

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Autora de 11 livros & 2 (Des)Formações
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🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade. Ver próximos eventos aqui.