Ecoespiritualidade

Coluna de Jorge Moreira

4 MIN DE LEITURA | Revista 55

O Encontro profundo

In memoriam de Stephan Harding

“O que quer que façamos na Terra vai ressoar para sempre pelo universo inteiro.” (1)

Stephan Harding

É outono, mas o dia brinca à primavera. O Sol irradia afagos por todo o lado e a temperatura persiste acima do normal. Gostaria que a presença das flores nesta altura do ano e na latitude onde me encontro fosse, somente, a expressão da alegria do Reino Vegetal, mas a realidade mostra uma faceta menos idílica – os ciclos da Natureza encontram-se significativamente adulterados.

Este facto expõe a interferência na estabilidade dos sistemas ecológico e climático do Planeta que, segundo a comunidade científica, se deve à incúria das sociedades humanas contemporâneas sobre a Natureza. Algumas correntes espirituais, da ética e da sociologia ambiental, apontam como uma das causas a obstinação por uma ideia ilusória de desenvolvimento. Como somos parte integrante da Natureza e da qual dependemos, a sua destruição não poderá ser considerada um processo contínuo de mudança positiva e de evolução que o conceito de desenvolvimento implicará. Pelo contrário! Mas, para compreender mais profundamente e trabalhar em soluções de mitigação mais efetivas dos problemas socioambientais é necessária uma abordagem que agregue saberes científicos, filosóficos, psíquicos e espirituais que a ciência holística engloba. Um dos investigadores que mais contribuiu para esta área do conhecimento foi Stephan Harding, que desencarnou a 2 de setembro de 2024.

Stephan Harding nasceu na Venezuela, em 1953, e doutorou-se em ecologia comportamental na Universidade de Oxford. Em 1990 é um dos primeiros professores a juntar-se ao Schumacher College, fundado por Satish Kumar, e lá conheceu James Lovelock, donde manteve uma amizade duradoura e uma colaboração científica em volta da teoria de Gaia, que culminou na sua obra “Animate Earth – Science, Intuition and Gaia”.  Neste livro, Harding faz uma integração cuidadosa da análise científica racional com a nossa intuição, perceção e sentimento, abordando a Terra como uma entidade viva e senciente à qual é necessário estabelecer uma relação correta para resolver os problemas ecológicos e climáticos. É um trabalho ancorado na ciência holística, que segundo Harding tem como base as quatro funções da nossa Consciência segundo Jung: pensamento, sentimento, sensação e intuição.(2) Mas não é um sentimento qualquer.

É um sentimento que aprecia o valor intrínseco das coisas e perceciona-as integradas num todo. Para Harding, uma das razões pelas quais estamos a destruir o Planeta é o porque não sentimos a beleza de uma paisagem.(3) Em vez disso consideramos mais o valor utilitário dos recursos que encerram o seu subsolo ou a madeira que porventura sairá de um corte raso. A par disso, para os povos originários, a Natureza está viva e cada entidade tem agência, inteligência e sabedoria,(4) “é normal os humanos falarem com a Natureza, saber que as árvores falam, que os pássaros falam e as plantas falam. Somos apenas nós, ocidentais, que esquecemos isto e também por isto destruímos o Planeta”.(5)

Por sua vez, o pensamento na ciência holística não é reducionista e fragmentado. Ele encontra-se mais em linha com o pensamento complexo, o systems thinking, os feedbacks ou a visão sistémica.

Embora a ciência holística seja um tema que me é particularmente querido, se tivesse de definir o que está no cerne do trabalho de Stephan Harding, diria que é o encontro. Por exemplo, quando se estuda um animal e num determinado momento se tem a sorte de ele nos olhar nos olhos, e nesse preciso momento termos a sensibilidade de nos conectarmos com ele, o tempo para. Nesse momento infinito de conexão conseguimos entender na plenitude o animal e o ecossistema onde este se insere. Podemos até ir mais longe e percecionar de uma forma mais profunda toda a Terra.(6) Ora, esta perceção é intuitiva. Nas palavras de Harding, “Um encontro é quando a estrutura conceptual desaparece e encontras realmente o ser, como o ser que surge de si mesmo, revelando-se a ti de uma forma que está para além do teu intelecto. É profundamente intuitiva e muito difícil de expressar. Na verdade, a linguagem científica é inadequada para esse tipo de encontro. É a poesia que o faz. Isto é um encontro poético”.(7) Para Harding, a probabilidade de se desenvolver encontros é maior quando nos apaixonamos pela Natureza e colocamos a racionalidade em segundo plano, sentindo o mundo através da experiência sensorial direta.

De forma complementar, Harding, em coordenação com o geólogo Sergio Maraschin, desenvolveu a Deep Time Walks (Caminhadas no Tempo Profundo). Trata-se de uma caminhada de 4,6 km ao longo de 4,6 mil milhões de anos da história da Terra. Atualmente, existe uma aplicação que explora as questões ambientais através da experiência da caminhada transformadora que tenciona levar os participantes a uma ligação profunda com o mundo mais-que-humano.(8) Baseia-se na ideia perene de contar histórias através do tempo e do espaço. Um estudo publicado em abril deste ano, na revista The Journal of Sustainability Education, onde Stephan Harding e Robert Woodford surgem como os autores do estudo, sugere que a Deep Time Walk “é um meio eficaz para desenvolver e aumentar a consciência ecológica e o compromisso com a ação nestes tempos de grave crise mundial”. (9)

Stephan Harding tocou o coração de milhares de alunos e leitores de todas as partes do mundo. Começava muitas vezes as suas aulas com música dedicada a Gaia. Ousou criar um curso em ciência holística há mais de trinta anos. Foi um ecologista profundo que desenvolveu a sua ecosofia Gaiada (Gaia’ed) (10) pela anima mundi da Terra. Ele percecionou um mundo vivo, constituído por entidades vivas, num cosmos vivo, onde a consciência se encontra em tudo o que existe.

A Luz da sua existência irá ressoar para sempre em todo o universo!

Que o encontro se dê!

Notas de Rodapé

  1. Karina Miotto. 2004. Stephan Harding e seu legado mais que planetário. O Eco. https://oeco.org.br/analises/stephan-harding-e-seu-legado-mais-que-planetario/
  2. Harding, S. 2006. Animate Earth – Science, Intuition and Gaia. Green Books, Dartington.
  3. Harding, S. 2023. Learning to Value. https://youtu.be/rBrNYm1dCVI?si=0-sxjX1CEdPnfHFz
  4. Harding, S. 2006. Animate Earth – Science, Intuition and Gaia. Green Books, Dartington.
  5. Ibid
  6. Inspirado em Harding, S. 2018. Dr Stephan Harding on Encounter. Schumacher College.
    https://youtu.be/W190qhF2Yr8?si=qZa7kftqcg8H3FK8
  7. Harding, S. 2018. Dr Stephan Harding on Encounter. Schumacher College.
    https://youtu.be/W190qhF2Yr8?si=qZa7kftqcg8H3FK8
  8. ver https://www.deeptimewalk.org/
  9. Harding, S.; Woodford, R. 2024. The Deep Time Walk – How Effective Is It?. Journal of Sustainability Education. Vol. 29, March 2024.
  10. Gaiada (Gaia’ed) – tornar-se desperto das necessidades fundamentais num frágil e interconectado planeta que partilhamos.

Para citar este artigo:

MOREIRA, Jorge. O Encontro Profundo. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-55/o-encontro-profundo/, número 55, 2024

Para compreender mais profundamente e trabalhar em soluções de mitigação mais efetivas dos problemas socioambientais é necessária uma abordagem que agregue saberes científicos, filosóficos, psíquicos e espirituais que a ciência holística engloba. Um dos investigadores que mais contribuiu para esta área do conhecimento foi Stephan Harding, que desencarnou a 2 de setembro de 2024.

Jorge Moreira

Jorge Moreira

Ambientalista e Investigador

Licenciado em Ciências do Ambiente, Minor em Conservação do Património Natural, mestre em Cidadania Ambiental e Participação, pela Universidade Aberta, e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É bolseiro FCT e investigador do Centre for Functional Ecology, Science for People & the Planet da Universidade de Coimbra.
É vice-presidente da FAPAS - Associação Ambientalista para a Conservação da Biodiversidade; dirigente da Sociedade de Ética Ambiental, dos movimentos cívicos Alvorecer Florestal e Aliança pela Floresta Autóctone.
É autor de vários artigos dedicados ao ambiente e voluntário em inúmeras ações de defesa, conservação, promoção e recuperação do património natural.
Tem desenvolvido investigação nas áreas da Ética Ambiental, Educação Ambiental, Sustentabilidade, Alterações Climáticas, Ecologia Profunda e Ecologia Espiritual, onde tem realizado conferências e promovido os temas.

shakti@sapo.pt