A Casa Da Floresta
Coluna de Élia Gonçalves e Patrícia Rosa-Mendes
4 MIN DE LEITURA | Revista 55
O Assunto das Estórias
“The business of stories is not enchantment. The business of stories is not escape. The business of stories is waking up.”
– Martin Shaw
Caminho pelas ruas à volta da minha casa, sob um sol baixo e escaldante e um céu carregado de nuvens escuras, com saudades das brisas frescas e dos dias cristalinos do Outono. Sinto-me a escaldar, e recordo que também eu vou fermentando, como as folhas que cobrem o chão, e os preparados sob a bancada da cozinha. Passo pelos mesmos sítios, enquanto passeio a cadela, e dou-me conta de como activo em mim as mesmas memórias em certos pedaços do caminho: naquela curva, lembro-me sempre da gratidão, na outra, lanço preces à Vida, e mais à frente, conecto-me com a pertença. Passeio a cadela, e passeio o meu corpo e a minha mente, para que a minha energia vital não estagne, e os velhos pensamentos caducos, as crenças bafientas e predadoras não me enredem nas sombras internas.
O Verão trouxe desafios emocionais, voltou a colocar-me em contacto com velhos padrões, com medos de infância e crenças adolescentes; esturricou-me, muitos dias, num fogo interno cheio de sofrimento emocional, de questionamento e vitimização. O Outono, trouxe o morrer, o deixar ir e alguma compreensão, mas vai-me fermentando aos poucos, relembrando que a morte é um processo e não um resultado, um contínuo cíclico no meio da imensidão da Vida.
A roda da Vida gira, uma e outra vez, e voltamos aos Invernos, à dureza do frio e à resiliência que nos é pedida para sobreviver. Aquilo que foi, para muitos, o trabalho exterior de ter de viver no meio de um mundo natural exigente, pode ser uma analogia com a crueza do trabalho interno: as nossas feridas vão, ciclicamente, doer-nos, como aquelas lesões de guerra que acusam a mudança de tempo. Todos temos as nossas histórias: experimentámos traições e perdas, desilusões e sonhos desfeitos, lutas externas e internas, e essas histórias, por mais duras que sejam, são parte de nós; são, muitas vezes, aquilo que faz de nós quem somos hoje.
Carl Jung dizia que não podermos contar a nossa história é uma das maiores tragédias humanas. Atrevo-me a expandir um pouco mais o conceito e dizer que qualquer ser vivo quer “contar a sua história”, e a própria psique colectiva precisa de contar as suas histórias. Talvez seja isso que cada um de nós é, uma parte de uma história muito maior, feita de muitas consciências e experiências, de muitas vozes e muitas formas de expressão. E se somos parte de uma história maior, somos também feitos de muitas estórias.
A minha história, também ela um retalho em tantas outras, é única e, porém, vulgar. Por vezes, enreda-me profundamente, e eu já não me distingo a mim mesma, perdendo-me nos pormenores, nas injustiças, nos desejos e nos vazios que carrego dentro. É todo um conto antigo, como aqueles a que chamamos “contos de fadas”. Se eu vos disser que esses contos de fadas sanam, talvez a maioria não acredite; e, ainda assim, não deixa de ser real. (Sim, eu sei, disseram-nos que eram “histórias de crianças”, foram transformados em contos de moralismo, ignorados ou rejeitados como coisas de somenos importância, e por lá ficam, perdidos no tempo, como tesouros escondidos. Confesso que sinto em mim uma saudade profunda e inexplicável de um tempo que nunca vivi, mas que conheço a outro nível, um tempo onde as histórias eram bênçãos oferecidas, objectos de poder que ficavam connosco toda uma vida, e que eram passadas no legado deixado às novas gerações.)
Quando ouço uma estória, algo de mágico acontece: aquilo que me parece pertencer a Outro, mostra-se meu também. De repente, vejo-me por outro olhar, descubro-me noutro ser – um personagem, uma árvore, um animal, um lugar – e percebo-me muito mais ampla do que me julgava, e também menos importante. Através de tramas simples, e imagens ricas, a estória fala-me de mim, não falando. Há qualquer coisa de libertador e sanador em saber que a minha experiência é também, em grande medida, a experiência do Outro. Poder ser “mais uma” traz um alívio inefável, um assumir de um lugar comum que traz alguma paz. Do mesmo modo, ser “mais um” é, também, pertencer a um mundo que não nos pede o extra do “Especial”. Curiosamente, numa cultura como a nossa cultura, tão centrada no “eu”, o tamanho dos nossos “eus” costuma ser muito pequeno, limitado ao tamanho dos papéis que desempenhamos ou das expectativas dos outros. O tempo que dedicamos a construir uma imagem, a ganhar mais “auto-qualquer-coisa”, é muitas vezes tempo em que nos vamos desconectando do Mundo Vivo.
As estórias que a Psique colectiva gerou, através de milénios de vidas individuais, cheias de traumas, enganos, sorte e azar, foi sendo passado, de voz em voz, numa narrativa cheia de imagens brutais, ladainhas para a memória e palavras de encantamento. Elas chamam pela Inocente que vive em nós, e segredam-lhe todas aqueles símbolos mágicos, pedindo-lhe que os guarde bem, pois um dia mais tarde, vai precisar deles. E, como os feijões mágicos, um dia os seus rebentos surgem, gigantes, na psique – aquele pedaço da estória, a relação com aquele personagem, aquela frase repetida vezes sem conta – iluminando e dando sentido ao momento que estamos a viver, com uma clareza que não precisa da lógica, mas tem o condão de nos apaziguar connosco mesmos e com a dureza da vida. De repente, abrem-se portas para o nosso mundo interno que nunca tínhamos visto, e se tivermos a coragem de aí adentrar, podemos reconhecer, finalmente, pedaços de nós que andavam perdidos há muito.
São pedaços de mim, e também pedaços de Outros; têm a existência mítica das Mouras, e a realidade física da oliveira do meu jardim. De repente, na minha história, já não sou apenas eu, mas também este chão que piso, o vento nos meus cabelos e os pássaros que avisam sobre a minha passagem. Sou tudo isto, e nada disto; sou a Cinderela e a Irmã Má, sou a Raposa que quer passar por aquela porta, e a Mãe que aguarda a chegada da menina. E, não sendo apenas eu, não sou mais importante do que ninguém, do mesmo modo que ser todos, me torna profundamente “eu”, num paradoxo que é sustido no mesmo lugar interno de qualquer estória. Acredito que quando a roda girar, e a Primavera regressar, continuarei a ser, mais plena e mais viva, até que não mais serei.
Para citar este artigo:
GONÇALVES, Élia; ROSA-MENDES, Patrícia. O Assunto das Estórias. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-55/o-assunto-das-estorias/, número 55, 2024;
Todos temos as nossas histórias: experimentámos traições e perdas, desilusões e sonhos desfeitos, lutas externas e internas, e essas histórias, por mais duras que sejam, são parte de nós; são, muitas vezes, aquilo que faz de nós quem somos hoje.
Patrícia Rosa-Mendes
Terapeuta Transpessoal
Instrutora de Meditação
Formadora na EDT – Escola Transpessoal
Tradutora
Contadora de Estórias
Mitologia – Arte – Eco-psicologia
Autora do Livro A Loba à Espera.
Élia Gonçalves
Colunista e Autora regular da Revista
Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal
Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia
elia.gonçalves@escolatranspessoal.com