Biografia dos Dias sem Princípio

Coluna de Inês Peceguina

5 MIN DE LEITURA | Revista 55

Desorganismo

parte I

 

Ele chama-se Rodrigo. Tem 5 anos.
A voz dele, inteira na acústica de infância. Feliz. Algumas infâncias. Não é verdade que a infância seja intrinsecamente bela e doce. Arrisco afirmar que as estatísticas, se existirem, revelem um cenário pouco idílico. E o Rodrigo não está muito feliz. Apesar da voz inocente.
Conceptualmente, a definição de felicidade infantil (que escrita assim, parece uma felicidade menor, imatura, daquelas a que não se deve dar grande importância, porque as crianças também crescem depressa e depois, se calhar, esquecem-se); retomando, felicidade infantil é então um conceito de múltiplas coordenadas e que varia naturalmente entre as diferentes culturas (e micro-culturas, como as famílias).

Varia também com o tempo histórico.
Varia individualmente.
Duas crianças que pertencem à mesma família, mesmo que gémeas idênticas, não são necessariamente identicamente felizes.

A investigação que se debruça sobre este tema, contudo, selecionou já alguns temas ou áreas-chave, numa tentativa de compreender o que faz com que uma criança se perceba como feliz.
Ao pesquisar sobre o assunto, a primeira evidência que surge, é que a maioria dos relatórios sobre felicidade ou bem estar infantil, não incluem crianças com menos de 10 ou 15 anos (e.g., Helliwell et al., 2024; Chollet et al., 2024). Sendo que, na minha perspectiva, o tempo forte da infância é muito antes, é aquele tempo da vida da pessoa durante o qual a imaginação é boca da cena. É a infância do primeiro quinteto. E é sobre ela que a psicologia que se dedica ao estudo da ontogénese do desenvolvimento mental, tem mostrado de forma consistente que é desse tempo-lugar o núcleo da imaginação, o seu momento de atividade mais forte (Piaget, 2013; Simonton, 2000).

Porém, encontrei apenas um relatório (o que não significa que não existam outros, a pesquisa não foi exaustiva), que incide sobre o que isso de se sentir feliz na idade pré-escolar, que é a idade do Rodrigo.
O Rodrigo tem 5 anos e, neste novo ano lectivo, mudou de escola. O Rodrigo não se sente feliz. Não conhece o território, não conhece os seus pares, não conhece os adultos e, para além disso, não tem nesta nova escola o seu irmão mais velho, com quem se incendeia regularmente, e de quem ouve, também regularmente, que ele, o Rodrigo, é chato. Ainda assim, e apesar dos incêndios, o seu irmão, mesmo sem saber, tem um lugar de suporte, de referência, farol, uma casa simbólica num lugar novo que é sempre muito grande, aos 5 anos.

Esse estudo, que depois deu origem ao relatório a que se chamou Children’s Perspectives on Happiness and Subjective Well-being in Preschool (Perspectivas das crianças sobre a felicidade e o bem-estar subjetivo no pré-escolar; Koch, 2018), foi desenvolvido na Dinamarca, e a pergunta colocada às crianças foi: o que te faz feliz no jardim-infantil?

Tenho a impressão de que o Rodrigo também teria coisas para dizer sobre isto, que talvez o ajudassem a gerir melhor este momento de transição, porque ele anda destroçado, chora muito, e depois deixa de chorar quando regressa para os lugares que já conhece e que fazem com que ele também se sinta conhecido, pelos outros e por ele próprio.

Voltando ao estudo, a investigação decorreu durante dois meses, e participaram 16 crianças. Foi um estudo etnográfico, ou seja, onde importa mais aprofundar, do que somar depoimentos, importa mais cada uma das 16 crianças, a sua perspectiva em particular, e menos a grandeza dos números porque, vá lá, as crianças não são iguais só porque têm 3, 4 ou 5 anos, de maneiras que, digo eu, de pouco serve ter 160, ou 1600 crianças, o poder de generalização é fraquinho, mas a ideia aqui, não é descobrir “o” procedimento, “a” receita, ou estratégia que transformem eficazmente o Rodrigo, e as outras crianças que, como ele, navegam de lugares-casa, para lugares-não-casa-bosques-assustadores-e-escuros (que são sempre os lugares novos, sobre os quais a criança não tem, ainda, âncoras afetivas, nem navegação, nem nada que a possa fazer sentir-se segura e feliz, sim, a felicidade e a segurança tendem a ser aliadas).

A investigação, escrevia, incluiu então 16 crianças, cada uma com o seu nome, entre os 4 e os 5 anos, que foram colocadas em pares, e a quem se pediu que fotografassem tudo o que no jardim de infância as deixava felizes. Para além disso, foram também captadas as conversas que as crianças tiveram umas com as outras, enquanto fotografavam. A seguir, as crianças observaram as suas fotos, num computador, e foram encorajadas a comentar cada foto (mais uma vez, foi registada a conversa, em áudio).

Das 200 fotos que cada dupla de crianças tirou, apenas duas eram referentes à equipa do jardim de infância. Os resultados mostraram também que as crianças associavam o bem-estar no jardim de infância à amizade, às brincadeiras livres, às experiências na natureza e, ainda, a serem desafiadas e vivenciar coisas fora do comum. Ao que parece, o bem-estar e a alegria, destas 16 crianças, manifestava-se quando elas podiam explorar e desenvolver uma vida no jardim de infância longe da vista dos adultos, não apresentando uma relação linear com a qualidade da relação com a equipa do jardim infantil (que era, em todo o caso, positiva).

Ou seja, voltando ao Rodrigo, que é o pequenino da família, e que é uma pessoa sensível, que precisa, mais do que o seu irmão, e não apenas por ser o mais novo, de saber com o que conta, com quem conta, o Rodrigo, que ainda não compreende os relógios, embora tenha vários relógios dentro do seu corpo, não tem nada daquilo, ainda, neste lugar novo para onde foi levado.

Talvez os pais do Rodrigo lhe tenham dito que ele está crescido, e que essa mudança de escola é precisamente porque ele, Rodrigo, está grandote, capaz, pronto para novos desafios.
A vida é mesmo assim Rodrigo, passamos todos por isso. Sim, é verdade. Mas ele é ele. E o medo, a angústia, a insegurança, são ele quem os sente (ou as sente), agora mesmo. E não conhece ninguém. E parece que todos já se conhecem (parece sempre, quando chegamos a um lugar novo, Rodrigo).

O Rodrigo não está, ainda, num lugar semelhante ao das 16 crianças Dinamarquesa. Primeiro, porque ele é moreno, os olhos de um castanho escuro muito brilhante e, agora, mais brilhante, porque está sempre com os olhos chorosos (o coração também); segundo, porque nesta nova escola não tem, ainda, amizades. E sem amizades, não há brincadeiras com amigos/as, menos ainda livres. E não há experiências na natureza porque, provavelmente, não há assim tanta natureza (à exceção dos outros humanos) e, se houver, agora, não lhe parece seguro. O Rodrigo, que não se sente nada seguro, que tenta como pode perceber se já passou uma hora, ou um minuto, não quer desafios, tomara ele… Coisas fora do comum!?

Se ele pudesse responder, se lhe perguntássemos, neste instante, Oh Rodrigo, o que é que te faz feliz na tua nova escola? Seria bastante provável que ele desatasse a chorar. A seguir, entre os soluços e o ranho que cresce reluzente na manga, como se vivesse com ele um caracol, a seguir, ele dizia: – Nada. Eu quero é ir-me embora, eu quero dar o fora, e quero que você (a mãe e o pai) venha(m) comigo. Porque ainda não há nada. Não há ontem, não há depois, não há re-encontro, não há sítios secretos, íntimos, e o mistério não lhe interessa, agora.

Neste momento, o Rodrigo está no raíz de um colapso relacional. E talvez até se esqueça disto tudo daqui a uns tempos. Ou talvez não. Porque estas situações de quebra das relações, são processos integrais, e o que é psicológico é inerentemente fisiológico também. A consciência do Rodrigo sobre esta matéria, é uma experiência ou fenómeno do corpo inteiro, não apenas do cérebro.

Não sei como age a equipa educativa desta nova escola (na verdade até sei… Sei que não age, que faz de conta que isto é tudo pequeno, como o Rodrigo, um colapsinho emocional). Imagino que o Rodrigo não tenha sido a única criança nova a chegar este ano. Mas sei que as pessoas, muitas pessoas, não são muito hábeis a lidar com estes assuntos, das emoções negativas, sobretudo se estas forem emoções negativas da criança. A dor da criança, ainda é maioritariamente percebida como uma dor menor. Porque as crianças, com 5 anos, são efetivamente pequenas. Talvez seja por isso, também, que os relatórios europeus que se interessam sobre as agruras e os contentamentos da infância, tendem a desconsiderar as crianças com menos de 10 ou 15 anos.

Continua na parte 2.

Referências

  • Arnheim, R. (1966). Toward a Psychology of Art: Collected Essays. University of California Press:
  • Bion, W. R. (1962). Learning from Experience. Karnac Books.
  • Bowlby, J. (1973). Attachment and loss, vol. 2: Separation: Anxiety and anger. Basic Books.
  • Chollet. D., Turner, A., Marquez, J., ONeill, J., & Moore, L. (2024). The Good Childhood Report 2024. The Childrens Society.
  • Helliwell, J. F., Layard, R., Sachs, J. D., De Neve, J.-E., Aknin, L. B., & Wang, S. (Eds.). (2024). World Happiness Report 2024. University of Oxford: Wellbeing Research Centre. https://happiness-report.s3.amazonaws.com/2024/WHR+24.pdf
  • Koch, A. B. (2018). Childrens Perspectives on Happiness and Subjective Well-being in Preschool”. Children & Society, 32, 73-83.
  • Lewis, T., Amini, F., & Lannon, R. (2000). A general theory of love. Random House.
  • Piaget, J. (2013). Mental Imaginery in the Child: Selected Works. Routledge.
  • Simonton, D. K. (2000). Creativity: Cognitive, personal, developmental, and social aspects. American Psychologist, 55, 151. http://doi.org/10.1037//0003 066X.55.1.151

Para citar este artigo:

PECEGUINA, Inês. Desorganismo – parte I. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-55/desorganismo-parte-1/ , número 55, 2024

Tenho a impressão de que o Rodrigo também teria coisas para dizer sobre isto, que talvez o ajudassem a gerir melhor este momento de transição, porque ele anda destroçado, chora muito, e depois deixa de chorar quando regressa para os lugares que já conhece e que fazem com que ele também se sinta conhecido, pelos outros e por ele próprio.

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.