Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

2 MIN DE LEITURA | Revista 55

Debaixo do manto da terra

 

O manto da terra é o manto da invisibilidade. Pois por debaixo da terra viaja a memória de já ter sido velha. E vejo-a. De cada vez que sou convidada a voltar ao chão. Debaixo do manto da terra. Chamado sagrado, onde me deito uma vez mais. 

Chão pontilhado de cogumelos, mestres do invisível, debaixo dos seus chapéus de feiticeiros, arquitetos subterrâneos das nossas fundações. Restaurando a memória e habitando lugares esquecidos, negligenciados, banidos. Da alma da terra e da alma do corpo.

Vejo-me velha. Aquela que já fui, aquela que ainda sou e aquela que um dia hei de ser. Na pele da terra e do corpo. Vejo a vida da terra e do corpo que já foi e que há de dar lugar a uma outra, a outra vida. Mas que também é, inevitavelmente, a mesma. E com ela amadureço. E dela renasço. E com ela um dia, por fim, me deitarei e renascerei. Com o peso do manto da terra, que embala e com a leveza airosa do cogumelo que se liga instantaneamente. E por um instante.

Em cada convite, uma peregrinação, ao submundo, às cavernas, às grutas e às tocas, da terra e da psique. Depois de rompida a resistência em me deixar cair e envelhecer com ela, recordo as rugas das mãos e dos olhos dos meus avós. Cada linha, uma homenagem a cada outono, da alma da terra e da alma do corpo. E vejo, como que pela primeira vez, as minhas próprias linhas. Nas linhas deles. Linhas que cosem e unem tempos e espaços. E consigo espreitar, como que pela primeira vez, o véu fino e transparente entre o aqui e o além.

E é na noção viva e clara da impermanência do véu que, trazendo angústia e sensibilidade, me traz igualmente a possibilidade de habitar cada um desses lugares. Esquecidos, negligenciados, banidos. Habitar cada suspiro e instante da natureza viva, impermanente e bela de todas as coisas. Pois na entrega à terra, à permeabilidade e à impermanência, os olhos do coração, com as suas linhas, veem com mais nitidez, sentem o arrepio da respiração e deixam-se poisar no deslumbramento.

Sinto, pois, que me ligam no tempo, os micélios.

E sinto que me ligam, os micélios, através do espaço. Através do chão que piso hoje, a uma comunidade feita de todos aqueles que pisam o mesmo chão. Pois na entrega ao lugar, ao tecer da teia e ao círculo, os olhos do coração choram mais a dor da terra, reclamam a pertença e enchem-se de fé.

Em cada convite despeço-me do que já foi e não será mais. E vejo-a. Coberta com o seu manto de velha, que também é agora o meu. E então entendo que foi sempre ela que também velou por mim desde o primeiro sopro. Até ao último. E é na noção viva e clara de que vida e morte são uma só, que poderei chorar e amar sempre, aqui e além dor, para cá ou para lá do véu. E, poderei então, e por fim, sonhar e semear comunidades bosque capazes de dar chão e pele às lágrimas da terra e do corpo. E as mãos, com as suas linhas, tornam-se capazes de dar amparo e pele ao amor que se verte quando o coração se parte. Ligando-se e dando-se com a força micelar da presença e da comunhão.

CÍRCULOS DE LUTO com Ana Alpande e Ana Sevinate

Nos dias 18 e 19 de janeiro reunimo-nos em círculo, para podermos atravessar lugares de perda, unid@s pelo mesmo chão e pelas linhas que tecem e entrelaçam panos e histórias. No espaço Hearth em São Pedro de Sintra com organização da Escola de Desenvolvimento Transpessoal.
Mais informações aqui.

Para citar este artigo:

SEVINATE, Ana. Debaixo do Manto de Terra. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-55/debaixo-do-manto-da-terra/, número 55, 2024

Em cada convite, uma peregrinação, ao submundo, às cavernas, às grutas e às tocas, da terra e da psique. Depois de rompida a resistência em me deixar cair e envelhecer com ela, recordo as rugas das mãos e dos olhos dos meus avós. Cada linha, uma homenagem a cada outono, da alma da terra e da alma do corpo. E vejo, como que pela primeira vez, as minhas próprias linhas. Nas linhas deles. Linhas que cosem e unem tempos e espaços. E consigo espreitar, como que pela primeira vez, o véu fino e transparente entre o aqui e o além.

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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