artigo de Alda Abreu Alves

Confiar na Água

6 MIN DE LEITURA | Revista 55

Em muitas relações humanas, o amor causa os mesmo danos que a água da chuva provoca na natureza quando não é absorvida por uma cobertura de solo natural. Tanto a água como o amor tornam-se violentos — quando chove há cheias ou erosão, quando não chove há fogos ou secas. Da mesma forma, as pessoas tornam-se insatisfeitas, insaciáveis, ressequidas, ciumentas e possessivas quando tocadas por um Eros que não flui em liberdade até às profundezas do coração, como a água que ao invés de nutrir os aquíferos, superficializa-se, e provoca destruição.

Pretendendo controlar essas forças, reprimimos, aprisionamos ou superficializamos as nossas relações amorosas em vedações apertadas de relações possessivas e restritivas, tal como aprisionamos a água em barragens, ou escravizamos seu fluxo em canais estreitos, com finalidades comerciais.

O amor quer mover-se livremente, tal como a água. Quer serpentear e oscilar, mas quer também enraizar-se profundamente em relações estáveis, tal como a água quer infiltrar-se profundamente na terra. Como pode a natureza da água tornar-se uma mestra para a cura das nossas questões relacionais? Como fazer emergir um ecossistema de vida em que o amor se torne sustentável e que a água seja livre? Qual a configuração deste ecossistema, para que consiga curar as relações amorosas do medo da perda e do abandono?

Observar e escutar a água em seu percurso natural é o primeiro passo: caminhadas pelos ribeiros, saltar pelas pedras, mergulhar no mar e ser grão de areia. Reter a água que a terra recebe é o segundo: criar charcos, colher água da chuva, cobrir a terra nua, desenhar paisagens de retenção de água. Apreender as qualidades supra-sensíveis da água – transparência e fluidez, é o terceiro passo: confiar que menos é mais, honrar simplicidade e verdade, recuperando a capacidade de fluir nas relações amorosas.

O amor e o Eros necessitam de estruturas relacionais diferentes, da mesma forma que a água precisa de diferentes estruturas ecológicas, para curar e triunfar. Quando a terra não está nua, e existe uma camada natural de solo na superfície, a água da chuva é uma verdadeira benção, penetra com profunda suavidade, fertiliza e nutre o solo, dando vida às plantas e saciando os animais. Da mesma forma, o Eros livre é uma verdadeira dádiva de vitalidade para todos os seres humanos, uma força vital sagrada que nos permite experienciar uma união natural profunda com todos os seres, quando recebido e amparado por uma relação de confiança. A confiança representa para os seres humanos, o que o solo permeável representa para a natureza: proteção afetiva e amparo são o manto verde da terra úmida.

Na natureza a expressão masculina mais poderosa é a água da chuva, que vem do céu e fertiliza a terra. Em algumas linhagens xamânicas a chuva é chamada de água masculina. Assim como o expoente da expressão feminina natural são as águas de nascente, que brotam da pedra como sinal de ascensão e purificação profundas.
Estamos a testemunhar em muitas partes do planeta a força destruidora das águas masculinas, cheias, deslizamentos de terra e cidades destruídas por inundações. Assim como testemunhamos o crescente desaparecimento das nascentes de água, da poluição de águas subterrâneas e da salinização de aquíferos nas zonas costeiras.

A relação das águas masculinas e femininas é vital para o equilíbrio energético da vida na terra. A impossibilidade da água masculina penetrar no solo por ausência de chão com cobertura vegetal reflete-se ao nível ecopsicológico de modo a testemunharmos relações humanas bélicas onde as águas femininas respondem a esta violência/violação com ressequidão, secura, até uma insensibilidade insondável e insaciável da libido.

Sacralizar a água é servir-se deste bem divino com amor e reverência, para saciar a sede de animais e plantas, para limpar e purificar a vida como um todo, a vários níveis. Utilizar água para enviar fezes humanas para o esgoto é o mesmo que cuspir na face de quem amamos. Sacralizar o amor passa primeiro por escutar suas necessidades essenciais, para servirmos ao divino amor com beleza e responsabilidade.

Uma prática ancestral de cura da relação das águas feminina e masculina é a sauna medicinal. Utilizada por muitas culturas ao longo dos milénios, a sauna é uma medicina ancestral que recebeu muitos nomes: vapor santo, sauna de purificação, tenda de suor, sauna de fumo, sauna castreja, temaskal, bania, hamman, mushiburo. Do oriente ao ocidente a sauna medicinal vem sendo utilizada para sanar nossos corpos a muitos níveis. Na sua origem lemuriana e atlante, a limpeza e purificação da sauna visa um processo numa camada ainda mais subtil da existência. O processo de sudação purifica o sistema fisiológico, nervoso e endócrino de forma profunda, permitindo aceder às camadas energéticas mais subtis. A sacralidade originária do cosmos se refaz durante o encontro da água com o calor das pedras. Este vapor misturado com ervas medicinais carrega a memória da origem da vida e devolve-nos ao princípio sem começo nem fim, onde a unidade da sexualidade é o portal sagrado e secreto da União e do Amor originário. Desta regressão à fonte primeva, onde o início da vida na água tornou-se um dia possível, renascemos.

O orgasmo do Cosmos, a grande explosão originada da fusão da água e do fogo, se atualiza em nossa carne, ossos e espírito, quando nos oferecemos ao serviço da cura do amor das águas masculina e feminina através de nós.

Há muitas formas de honrar e praticar a medicina da Sauna Sagrada. Um caminho longo de prática e investigação e que teve sua origem em diferentes linhagens femininas, oriundas de tradições africanas, indígenas e lusitanas, deu origem a uma sauna que tem como objetivo servir à cura do amor entre os povos ligados pela Águas Atlânticas.

Ao reconhecer em sua ancestralidade as profundas dimensões desta fusão cultural, Alda Abreu Alves, brasileira nascida na Bahia, Guardiã das Águas e Mulher de Caminho, comprometeu-se com a missão de dar à luz na terra de seus ancestrais uma Sauna Matriarcal. Guiada pelo sincretismo de uma linhagem feminina que interconecta o animismo celtibérico, o culto pré-histórico à Deusa Nammu, a tradição de povos originários americanos e as matrizes culturais afrodescendentes originárias do Brasil.

A palavra sincretismo fala-nos de dizer sim à crença do outro. A confiança, a transparência e a capacidade de fluir e fundir da água é espelho deste grande sim, que dissolve fronteiras e faz relembrar a irmandade na Terra. A cura reside justamente nesse processo de fusão, validação e aceitação de crenças, culturas, costumes e tradições heterogéneas, para assim nos tornarmos novamente capazes de produzir pertença na diferença. A diversidade é a base fundamental para a abundância ecológica, portanto restaurar a capacidade humana de sermos diversos, divergentes, singulares e heterogéneos é o que nos une à multiplicidade viva e complexa da Teia da Vida. O acolhimento pacifico e amoroso das diferenças é princípio fundamental das linhagens matriarcais, e por isso é a água viva que purifica e benze os trabalhos desta Sauna medicinal, localizada em Fafe, Zona Norte de Portugal.

O sincretismo é a própria inteligência da água, que dissolve em si mesma tudo o que toca seu corpo, e que segue fazendo seu caminho relacionando-se com tudo e todos, pedras, plantas, microorganismos, minerais, animais até que sua purificação aconteça. O fluxo invisível de eterna purificação das águas religa-nos à dimensão espiritual do sonho de paz da Grande Mãe Terra. Dizer sim ao outro em nós é a lição das águas que ao tocar as pedras incandescentes alquimiza o fogo dando origem a um vapor medicinal que contém informações epigenéticas da fonte criadora. O mesmo fogo que Eros acende nos corpos dos amantes, mesma informação que ilumina no ventre das mulheres o cálice sagrado que irá acolher as águas femininas e masculinas da fecundação. Curar aquilo que não aceitamos na diferença das relações é uma limpeza profunda, transgeracional e histórica que estamos todas e todos a fazer, saibamos ou não.
Honrar as medicinas vindas das Américas, da África, assim como as tantas medicinas deste território Português é trabalho desta Sauna. Honrar as sacerdotisas e magas deste território, honrar as matriarcas negras e as plantas de poder autóctones dos povos originários do Brasil é trabalho desta Sauna. Honrar o tempo em que o triângulo do Atlântico ainda estava inteiro, indígenas, africanos e portugueses eram um só povo e a raça humana sabia o que hoje estamos a lembrar, também é.

Reverência à tribo oceânica, um dia Atlante, mas também Asteca, Yanomami, Guarani, Kayapó, Yorubá, Berbere, Ibérica, Celta e sobretudo pagã, unidas pela diferença através da magia de sabermo-nos feitos de Água e Fogo!

Com as bênçãos de Sulis, Olho do Sol, Deusa das águas termais, e as bênçãos de Yemanjá, Rainha do Mar, Odoyá! Agô. Invocamos a força das Yabás: Mamãe Oxum, Ora Iê Iê, pedimos licença a Brígida e Cale, Deusas Solares deste território, padroeiras da cura e da magia, do fogo e dos caminhos, Abençoem as curas do amor, doulem nossos renascimentos, nos protejam do demasiado calor, nos emprestem os escudos mágicos, Saluba Nanã Borokô, a Velha Deusa das Águas profundas, Iaiálodê! Agô. Nos conceda luz a nossos quereres, pureza aos nossos corações e firmeza a nossos propósitos. Que mesmo ainda sem olhos para ver, óvulos dentro do útero de nossas avós, saibamos recordar de onde viemos, dizer sim ao Amor e para sempre confiar na Água.

Para citar este artigo:

ABREU, Alda Maria. Confiar na Água, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-55/confiar-na-agua/, número 55, 2024;

A cura reside justamente nesse processo de fusão, validação e aceitação de crenças, culturas, costumes e tradições heterogéneas, para assim nos tornarmos novamente capazes de produzir pertença na diferença. A diversidade é a base fundamental para a abundância ecológica, portanto restaurar a capacidade humana de sermos diversos, divergentes, singulares e heterogéneos é o que nos une à multiplicidade viva e complexa da Teia da Vida.

Alda Abreu Alves

Alda Abreu Alves

Mulher, Mãe, Cuidadora. Brasileira

Filha de pai e mãe portugueses, há 6 anos atravessou o Atlântico para reconectar-se com a terra dos seus ancestrais. Educadora e Terapeuta, trabalha em contextos artísticos, comunitários e educativos há mais de 20 anos. Facilitadora de Biodanza, Guardiã das Águas e Mulher Medicina. Licenciada em Artes, com mestrado e doutoramento em Psicologia Clínica, acredita na dança como verdadeira expressão da natureza humana e que o divino está dentro de tudo o que vive.