Ciclos da Terra e da Alma

Coluna de Íris Lican Garcia

3 MIN DE LEITURA | Revista 54

Percorro o Leito

Seco do Rio

 

O rio tamanho como tamanha é a minha pequenez.
O Espírito Divino não poderá jamais ser honrado em templos construídos por mãos humanas.
Não sou eu quem o diz, mas os povos nativos destas Terras, como de todas as Terras.
Ergue-se o templo de pedra, magnânime e negro, entidade de poder, de Saber, de Ser por entre a quietude do poente.
São as pedras, penedos, fragas, nascentes, rios, montanhas, estrelas, plantas e animais que conduzem o culto. Seu Espírito emanente e transcendente lembrando que as quatro paredes que as mãos humanas concebem, por mais belas que sejam, estreitarão sempre o horizonte, condicionando a Liberdade Infinita da experiência à frouxidão. Ficámos presos nas quatro paredes da mente e do raciocínio científico e esquecemos os mistérios da carne que são as vísceras verdes radicais, enraizantes da Terra Viva; os mistérios dos ossos, as pedras negras que na sua translucência revelam a memória ancestral pelo corpo-sopro que se forma, deforma, desforma, transforma à medida que a Vida o trespassa além do que nos é possível conter no eu temporal e temporário, que no vislumbre da própria Alma se amplia como Todo.

Essas quatro paredes onde o tempo cronológico oprime e nos distancia do essencial tempo de kayros, o tempo sentido, que é o senso da Natureza cíclica, maior, das suas passagens entre portais de ascendência e decadência da Vida Verde, do tempo de luz solar e da noite, do frio e do calor.

Onde me chama a ancestralidade não busco identidade nacionalista, mas antes o pertencer primordial, primeiro, inabalável e indelével da pertença às forças telúricas, ctónicas, subterrâneas, terrenas e supra-terrenas que nos formam. Porque não somos nós que caminhamos pela Vida, mas a Vida que faz de nós o caminho da sua manifestação.
Lucefecit, ribeira seca que de novo terá caudal, porque o rio não se deixará prender para sempre, esperará apenas o suficiente para que o possamos perceber claramente.
Caminho no leito seco, ante a presença profunda e além do tempo de Endovélico, Senhor primeiro. Ao tocar-me, de imediato me transformo, sem mesmo o pensar ou perceber. Só agora na distância de algum tempo me posso ir dando conta que há lugares de onde não retornamos, pois somos-lhes e são-nos pertença, presença.
Sem pertença não há presença; sem presença o fio condutor coerente entre passado e futuro não se tece e nada pode existir e subsistir sem esta Teia.

Percorro o leito seco do rio.

O rio tamanho como tamanha é a minha pequenez.

Lucefecit serpenteia ainda, ladeado a Freixo, Sobreiro, Carvalho.

Luz se faça e se desfaça, no enlace entre o nascente e o poente: da sazonalidade, do dia, da Alma no seu mais interno que não é apenas mas também é inferno que se atravessa para da dor formar a cura.

Lembro que a Loba velha caminhava precisamente só nos leitos secos dos rios, e quanto mais caminhava mais anima (alma animal) se tornava. E quanto mais se afastava do mundo apenas social que tanto confunde, mais se encontrava com a verdadeira Natureza Divina, manifesta em tudo o que vive e em si mesma, mas que se comunica com linguagem que transcende a palavra e que esta não contém. Porque as próprias palavras têm que ser entendidas nos silêncios e respirações entre elas, é o não indizível que invisivelmente revela o sopro da Vida que se comunica. O resto, é distração.
Caminhar no sinuoso contorno intocado da ribeira é o compromisso de deixar a linearidade e entender a profundidade como único caminho caminho evolutivo. Adentrar a parte mais funda do outrora caudal é lembrar que aqui onde hoje caminho houve e retornará um caudal com corrente que me poderia levar a própria Vida e tornar-me seu.

A velha Loba relembra, que onde o rio secou é preciso sê-lo, canta-lo, honra-lo, chama-lo pelo sangue que desta água é tecido. É preciso decompor por dentro as crenças e certezas e recompor a memória, com esperança activa e mãos laboriosas.

Porque: mesmo se só temos caudais secos e dispersos esqueletos inertes de criaturas esquecidas do Bosque ancestral, há que remontar os ossos e soprar-lhes toda a Vida que em nós temos. Só temos que lembrar: o nosso tamanho. É a pequena semente que contém todo o potencial da Vida vindoura.
O eco canta: Endovélico, Senhor da pedra, do rio, do submundo, da Medicina, retorna as águas a Lucefécit e a todos os rios.
A Lua nasce, a Coruja canta e eu já não sou senão a encosta e tudo o que nela É.
O meu filho senta-se no meu colo e baixinho sussurra: eu vejo o Senhor Dragão adormecido nestas pedras mas sei que há quem não consiga ver. Beijo-lhe as mãos e na escuridão translúcida ele escala os caminhos sinuosos do Templo de xisto, do ponto mais baixo ao mais alto.

Para citar este artigo:

GARCIA, Íris. Percorro o Leito Seco do Rio. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-54/percorro-o-leito-seco-do-rio/, número 54, 2024

O eco canta: Endovélico, Senhor da pedra, do rio, do submundo, da Medicina, retorna as águas a Lucefécit e a todos os rios.
A Lua nasce, a Coruja canta e eu já não sou senão a encosta e tudo o que nela É.
Íris Garcia

Íris Garcia

Colunista e Autora regular da Revista

Sou a Íris. Sou Mãe, Terapeuta e Educadora Psico-Somática, Formadora de Fertilidade Consciente, Yoga Terapeuta, Doula, Mulher Medicina, Herbalista, Artista de Dança, Autora, Investigadora e ecologista. As minhas linguagens primeiras são a Natureza, a escrita e o movimento. Caminho, danço e escrevo desde que me recordo. O que me move é a vontade de cultivar equilíbrio sistémico a partir do respeito pela Natureza intrínseca de cada pessoa e sua experiência íntima e única,  em inter-conexão com as suas relações humanas e naturais, desde o lugar do corpo em proximidade orgânica com a Terra Viva.

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