O Cântico dos Cânticos

Coluna de Amala Oliveira

3 MIN DE LEITURA | Revista 54

Carta no Motel XX

 

Encostada a ti sinto o sangue a vibrar como se fosse a seiva de uma árvore buscando lugares e conexões para alimentar fogo no interior das células.

Pausa. Respiro. Poiso a chibata e acaricio-te a pele vermelha, o teu corpo arquejando  de encontro às mãos para mais uma volta.

Invoco Shiva que dança no altar por ti montado e sorrio, pensando nesta nossa forma de amar tão rica em cores e texturas, onde brincamos com as narrativas e ritmos que fluem ao sabor da imaginação e das fantasias. Do reverente sagrado ao absolutamente pecaminoso. O rogares-me uma oração de gratidão com lágrimas nos olhos e de seguida rebolares-me aos trambolhões sem dó nem piedade contra o sofá porque a cama está longe de mais.

Dizia o poeta que todas as cartas de amor são ridículas. Talvez esta seja uma forma absurdamente ridícula de dizer que te amo. Muito, tanto.

Na celebração do nosso aniversário perguntaste-me o que queria. Respondi que nunca tinha ido a um motel. E providenciaste 24 horas numa suite recheada de tesouros, como a gruta do Ali Baba. Preparámos antecipadamente guiões, pautas, instrumentos e menu. Com direito a nomes de pirata e tudo. Porque uma grande aventura tem sempre de ter um mapa, daqueles com x’s, palmeiras e caveiras traçadas a vermelho. Apelidaste-te Xico Faneca. Eu, Rebecca Loba do Mar – que uma mulher tem de ter estilo, vá, mesmo sendo uma intrépida corsária que gosta de caçar amantes em portos duvidosos das Caraíbas.

Chegámos a um quarto que superou todas as nossas expectativas. Parecíamos crianças numa loja de brinquedos. Qual a intensidade das luzes? E as cores? Primeiro jacuzzi ou sauna? Para que raio servirá aquilo? Isto tem potencial. Ai Xico, até te canto um fado.

Ladies first. Play ON.

É sempre delicado ser quem abre as hostes, quem levanta a toada energética do sexo. São esses primeiros momentos que ditam o que se pode revelar uma experiência magnífica ou um desastre total. Requer-se foco, devoção e total presença, como um maestro ou maestrina a comandar uma grande orquestra. E quando há verdadeira intimidade, a cumplicidade telepática de quem conhece o corpo e os sentires da outra pessoa, podem ser criadas sinfonias inesquecíveis, jam sessions que ultrapassam o improviso dos virtuosos.

Há muitos anos atrás aprendi que o melhor sexo é um exercício planeado. E esta máxima continua a guiar-me na vida pessoal e profissional. Nada contra as rapidinhas, os encontros fugazes, o sexo que acontece quando tem de acontecer porque a Vida assim se quer cumprir em prazer nos nossos corpos. Mas os espaços cerimoniais preparados com antecipação e dedicação… Ai! Tanto mais que abrem…

Desengane-se quem ache que os rituais são só para as cerimónias oficiais da sociedade. Para mim, o quarto é o meu templo sagrado e o meu corpo o grande altar onde consagro as forças elementais, conjuro a natureza inteira e viajo no cosmos à velocidade dos orgasmos multidimensionais. Há sabedoria muito antiga que transborda pelos poros da pele suada e só se revela num cérebro expandido pelo prazer em traçado ritual.

Neste motel à beira mar plantado as horas passam num tempo diferente, fora do tempo, fora do espaço, nesse túnel extático que abrimos, sustentamos e no qual nos dissolvemos para mais tarde renascer.

Mudamos o cenário, estou quase a terminar o meu papel. Pausa, paragem na navegação para champagne, bombons e beijinhos. Eu e tu, o nós-namoro delicado e tecido em corações expandidos. A paz, a conversa livre que abre as profundezas mais honestas dos nossos mares interiores, os monstros que aí se escondem e revelam nestes momentos de tanta vulnerabilidade e entrega a dois. A maneira como nos rimos dos demónios e os açaimamos com ainda mais amor, nesse espelho gentil que somos um para o outro.

Levantas-te e penetras-me com o teu olhar de lobo. Uivo e antecipo com um friozinho de excitação o que de seguida me espera.

Gentlemen Next. Play ON.

Hoje, recolho os preciosos fragmentos de memória do que ali aconteceu. Os estados de transe têm destas coisas, retemos o que de mais importante aflora, como um crivo de água, e o resto deixamos ir. São na verdade partes velhas que se desprendem, abrindo espaço para as novas que chegam. E aqui chegaram muitas.

Meu amor, meu grande amor, meu amigo, meu amante, meu querido companheiro de viagens terrenas e místicas… Gratidão e reverência a ti. Fazes-me ter esperança e confiança no novo masculino e na possibilidade de um novo mundo. Amo-te.

Tua Loba do Mar

Para citar este artigo:

OLIVEIRA, Amala. Carta no Motel XX. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-54/carta-no-motel-xx/, número 54, 2024

Desengane-se quem ache que os rituais são só para as cerimónias oficiais da sociedade. Para mim, o quarto é o meu templo sagrado e o meu corpo o grande altar onde consagro as forças elementais, conjuro a natureza inteira e viajo no cosmos à velocidade dos orgasmos multidimensionais. Há sabedoria muito antiga que transborda pelos poros da pele suada e só se revela num cérebro expandido pelo prazer em traçado ritual.

Amala Oliveira

Amala Oliveira

Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator

Sou Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator, pioneira da Sexualidade Sagrada em Portugal, vivendo-a e partilhando-a como um caminho de devoção, cura e revelação.
Investigo o Paganismo e Xamanismo Ibéricos, tendo sido iniciada na Bruxaria Tradicional Portuguesa pela minha mãe. Sou Buscadora de Visão, Temazcalera e Guardiã de Fogo Sagrado pela linhagem da Abuela Margarita.
Herbalista aprendiz do mestre alquimista Juan Plantas nas plantas mágicas e medicinais da Península Ibérica, sou a fundadora do projecto SAGRAR e autora do Oráculo dos Animais da Península Ibérica.