Mil-em-Rama

Coluna de Maristela Barenco

3 MIN DE LEITURA | Revista 53

Ver. Resistir. Interromper. Inventar

a potência de uma Rede

 

Redes são padrões relacionais e orgânicos de uma vida que é sistêmica. Se complexo é tudo o que se tece de forma conjunta, a rede pode ser a configuração relacional desse padrão.
Mas houve um tempo em que homens da ciência ocidental decidiram pela linearidade da vida. Em suas mentes havia linhas e bolas de bilhar. Assim Newton, Descartes e Bacon deixaram um legado, cuja capilaridade é indescritível. Até mesmo quem nunca se aproximou da ciência, aprendeu a transformar a teia de aranha em linha de trem. À linha, seguiu-se a separação, surgiu a análise e a categorização; depois, a especialização e até a hiperespecialização. O frankenstein fez morada em nossos pensamentos e corações.
No início do século passado, com o advento da física quântica e da teoria das redes… a rede, como possibilidade, recrudesceu. E ainda que a tecnologia tenha possibilitado a efetivação desse modelo como padrão, o cartesianismo ainda nos habita.
As tecnologias em rede fizeram da experiência humana e planetária um fenômeno em termos de conexão. Pessoas de mundos tão distantes se conectam a um clique; eventos que acontecem nos extremos planetários podem ser apreciados de forma simultânea. O mundo, sim, foi ampliado. As fronteiras geográficas, na rede, são invisíveis. Comidas, paisagens, rituais, culturas, línguas, humanidades, artes, modos de viver… tudo isso se encontra à nossa disposição.
Mas como nenhuma experiência histórico-mundial encontra-se imune às ordens do capital neoliberal, as redes foram gestadas mais pra “enredar”, do que para conectar. Aliás, nunca experimentamos tanta desconexão, seja conosco, com nossos propósitos, com a natureza que nos constitui, com nossos amores. Como nos conectar se a mais valia que nos empobrece é a captura do tempo?
Enredados estamos. Capturados. As redes tornaram-se dispositivos de aprisionamento. O filósofo Peter Pál Pelbart nomeia: é modo de controle de nossas subjetividades! Sim, estamos presos em conexões saturadas. Há saturação de imagens, de palavras, de sons, de estímulos, de ideias, de prescrições. Sentimo-nos intoxicados. E a promessa de ampliação, nos reduziu. Somos menos, mais pobres, quase nada. Reféns de influencers, sem percebermos que esse é o nome moderno do colonizador. As redes logo se tornaram vitrines de um grande shopping, invisível. O consumismo tornou-se um vício. Byung Chul-Han, no Livro Sociedade da Transparência, evidencia o aspecto pornográfico das redes: desnudamo-nos nela e imploramos para sermos vistos, porque ser visto tornou-se condição de estar vivo. Estamos adoecendo: seja por automatismo nas formas de viver, seja por excesso de um gregarismo que, em meados de 1800, o filósofo Nietzsche já advertia: o espírito de rebanho massifica e nos reduz ao que é homogêneo. Nas redes estamos mais como assujeitados do que como sujeitos singulares.
Mas estas linhas não querem ser apocalípticas. De fato, precisamos ver a problemática que se desenha na invisibilidade. Mas, o que fazer, se não é possível e nem desejável retornar a uma condição anterior? Peter Pál Perbart intui: é preciso criar novas redes no influxo dessas! Redes menores, que sejam tecidas em outras escalas, outros espaços, outros ritmos, outras finalidades, em torno de causas preciosas e não instagramáveis, que precisam ser sustentadas com gestos mínimos: não os meus apenas, nem apenas os seus, mas os de uma comunidade, de uma tribo, de uma aldeia, de um vilarejo, de um quilombo. Redes essas que se comprometam com o pertencimento e com a reciprocidade: que possamos nutrir algo que nos nutra; que possamos sustentar algo que nos sustenta; que possamos, sobretudo, manter acesa a chama da fogueira das causas que valem a nossa existência.
O espaço dessa Revista, Vento e Água, tem sido essa rede para mim, há algum tempo. Ao ler meus colegas, sinto esse pertencimento de base, de estar de volta, a uma espécie de aldeamento afetivo, onde podemos nos sentir novamente em casa. 
É preciso interromper esses dispositivos que nos adoecem, que nos dessubjetivam de nossas singularidades. Mas resistir é pouco. Precisamos liberar nossas forças e potências criativas, em linhas de fuga, para criar e inventar outros modos de viver, que respeitem a escala humana e a ajudem a se reconectar com todas as escalas da vida. Que tipo de Rede você alimenta e escolhe?

Para citar este artigo:

BARENCO, Maristela. Ver. Resistir. Interromper. Inventar. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-53/ver-resistir-interromper-inventar/, número 53, 2024

Redes menores, que sejam tecidas em outras escalas, outros espaços, outros ritmos, outras finalidades, em torno de causas preciosas e não instagramáveis, que precisam ser sustentadas com gestos mínimos: não os meus apenas, nem apenas os seus, mas os de uma comunidade, de uma tribo, de uma aldeia, de um vilarejo, de um quilombo. Redes essas que se comprometam com o pertencimento e com a reciprocidade: que possamos nutrir algo que nos nutra; que possamos sustentar algo que nos sustenta; que possamos, sobretudo, manter acesa a chama da fogueira das causas que valem a nossa existência.

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

Instagram: @mil_em_rama
E-mail: maristelabarenco@gmail.com