artigo de Maria Trincão Maia

Noite

4 MIN DE LEITURA | Revista 53

Acordo a meia da noite em casa do meu irmão, o meu sobrinho dá suficientes voltas na cama para que os seus pés estejam agora na direção da minha cara. A um movimento de ser ponteada por qualquer poder onírico. Durmo no chamado gavetão, a comum cama debaixo da cama das crianças para que possam receber alguém. Eu sou o seu alguém. Estranho sempre a primeira noite, a mudança de espaço, de ambiente. Ele dá mais uma volta e o pé está cada vez mais em cima de mim, vejo episódios seguidos de uma série para dormir e o sono fica cada vez mais distante, mudo de série, e quase que volto a dormir mas a barriga dá sinal. Estou com fome, levanto-me e agarro nas minhas coisas todas, deixá-lo-ei embalado nos seus turbilhões de sonhos, o mais certo é que de manhã esteja entre a cama dele e a minha.

Enquanto como olho para a janela, numa grande avenida lisboeta dorme, aparentemente. Mas há luzes acesas, há sempre em qualquer hora luz acesa. Penso que talvez a minha insónia, resistente a uma boa dose de comprimidos para dormir seja mais do que isso. Seja uma urgência de observar, de observar o mundo em que me encontro. Olho o prédio enorme em frente, que tapa qualquer visão para além dele, não é suficientemente próximo mas é suficientemente largo para que nada seja visto para além dele. É uma barreira com quadrados de luzes. Observo-o várias vezes. Durante uma altura havia sempre uma luz lilás acesa no último andar, eu acreditava ser de um aquário de répteis. Já os amigos do meu irmão diziam ser uma espécie de bordel, a minha cunhada não tinha opinião formada e o meu sobrinho não sonha a sua existência. A luz lilás apagou-se de vez, a casa foi vendida e seja o que for que ali existia vai mais tarde ou mais cedo ser apagado da nossa memória.

Sempre me questionei sobre o porquê da proximidade das paredes com os nossos vizinhos não nos torna mais próximos?, porque é que as 4h45 da manhã estão luzes acesas no prédio da frente? E neste em que estou para além da minha será que existe mais? A curiosidade assalta-me e a falta de respostas ou interações possíveis, resta-me entrar pelo mundo onírico.

Deixamos de saber lidar com os outros, eu própria durante anos fazia questão de não conhecer os meus vizinhos, não interagir, dizer bom dia e boa tarde, expressar-me sempre educadamente seja com quem for, mas sempre com a devida distância. Simpática mas inacessível. Mas sempre observei todas as janelas à volta e perguntei-me o que nos separava realmente, o que escondem tantas paredes e porque precisamos tanto de nos isolar.

Deliciava-me com a vizinha do rés-do-chão de um prédio em que vivia, que durante o dia apanhava banhos de sol no seu quintal em soutien, saiote e chapéu. Com vontade de lhe perguntar tantas coisas, de a saber como ser humano.

 Percebo que talvez, por hoje, a minha insónia não seja ansiedade ou mesmo insónia, mas uma necessidade urgente e emergente de escrever, de pensar sobre alienação, de escrever sobre as nossas barreiras. Talvez não haja relaxantes suficientes para acalmar a minha necessidade de comunidade, talvez tenha sido os pés do meu sobrinho a acordar-me para tal. Porque é raro podermos ver uma planta do pé tão perto e tão viva. Quando voltar para casa, para minha casa, o meu vizinho saberá que voltei, vai ver o meu carro e dirá: foi boa a viagem menina? Vai ver-me a tirar de novo mil coisas do carro e provavelmente a voltar com outras tantas. O sr. Armando nascido e criado na rua onde vive, uns olhos azuis, muito azuis e uma pele muito fina que os 80 e tal anos não escondem. Chama-se Armando, tem sempre uma t-shirt por baixo da camisa que diz Armando, mas é sempre conhecido pelo Acácio nome do seu pai “Acácio das bicicletas”, arranja bicicletas, e todos os dias tem a loja aberta, menos ao domingo. Uma perfeição de loja, onde os parafusos, porcas, pregos, materiais são devidamente arrumados em frascos limpos todas as semanas. O sr. Armando orgulha-se da sua limpeza de loja. Baixei a guarda ao fim de muitos anos a viver em prédios, hoje já não vivo só num sítio, vivo num bairro onde vou conhecendo as pessoas. Mais à frente vive uma amiga de longa data, do outro lado a Manuela, a minha costureira atura-me nas modificações de roupa, todas as semanas vou lá. Comecei a dar-me ao bairro onde vivia, e comecei a percebe-lo ao chegar a casa para além das minhas paredes. A Manuela noutro dia disse: ai que a menina Maria tem um quintal muito ao abandono. Eu ri-me e disse-lhe que era verdade, passado pouco tempo comecei a arranjá-lo.

Existe um cuidado para além do simples meter-se na vida de alguém. A uma observação e genuína curiosidade humana por sabermos quem somos e quem nos rodeia. Se eu tivesse uma luz lilás sempre acesa tinha a certeza que me iam perguntar e eu não levaria a mal e responderia.

Olho de novo para o prédio da frente, talvez só naquele prédio vivam tantas pessoas com na minha rua, e talvez ninguém saiba porque havia uma luz lilás sempre acesa. E no meio desta escrita ouço um suave: tiaaaa. Salto do sofá sem pensar, fui chamada, nos pés da minha cama está sentado meu sobrinho. Cais-te? Pergunto-lhe. Não, não sabia qual era o lado. As voltas na cama fizeram-no perder o lado, deixo-o na minha cama, com a cabeça na almofada e com um raposinho (aconchegar a roupa ao corpo) feito como a minha tia me fazia. Abraço-o, é um pequeno mundo por desvendar. Certifico-me que ele volta a dormir e volto para esta escrita. Fui precisa, nesta pequena comunidade e esta insónia tronou-se mais do que isso, talvez todas sejam, talvez todas necessidades de expressão, de expressão de amor, de escrita, de nos entender para além das paredes. Talvez o meu corpo esteja cansado de não saber se parte de algo. Dos nossos fortes de solidão. Talvez seja a falta da minha cama, almofada e manta com que durmo abraçada, ainda cheira à Gala. Ou talvez seja a falta daquela comunidade que vou descobrindo, que alegremente sei que não temos muito em comum, mas ao mesmo tempo partilhamos aquele espaço, aquele contexto, por isso partilhamos muito mais do que eu possa imaginar.

Adormeço rapidamente… de manhã os passinhos pequeninos aproximam-se de mim e enroscam-se em mim. O pequeno mundo acordou e o dia começou.

Para citar este artigo:

TRINCÃO MAIA, Maria. Noite. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-53/noite ,número 53, 2024

 Certifico-me que ele volta a dormir e volto para esta escrita. Fui precisa, nesta pequena comunidade e esta insónia tronou-se mais do que isso, talvez todas sejam, talvez todas necessidades de expressão, de expressão de amor, de escrita, de nos entender para além das paredes. Talvez o meu corpo esteja cansado de não saber se parte de algo. Dos nossos fortes de solidão. Talvez seja a falta da minha cama, almofada e manta com que durmo abraçada, ainda cheira à Gala. Ou talvez seja a falta daquela comunidade que vou descobrindo, que alegremente sei que não temos muito em comum, mas ao mesmo tempo partilhamos aquele espaço, aquele contexto, por isso partilhamos muito mais do que eu possa imaginar. 

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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