Ideologia de E-S-C-A-P-E
Re-encontrei este acrónimo, E-S-C-A-P-E, nos meus mil cadernos de notas. E, apesar de este ser apenas uma pequena síntese desta proposta em responsabilidade e maturação, achei que estava no momento de a traduzir e partilhar. Isto porque os convites à jornada da Ecopsicologia e as peregrinações da Eco-Mitologia estão profundamente enredados com esta importante prática de discernimento. Um aprofundamento da lenta tomada de consciência de como estamos real e profundamente – cultural, metabólica e ecologicamente – enredados em múltiplos contextos que derramam uma série de pressupostos sobre “como o mundo funciona”.
Genericamente temos demasiada pressa para chegar às soluções e resoluções, o que não nos permite o valioso tempo de mastigação das profundas e enredadas formas conceptuais e metabólicas de como estamos TODOS realmente envolvidos e replicamos o que queremos “resolver”. Agonizamos perante o que chamamos “filosofia” ou “história”, pois só queremos o final prático e aplicável à nossa vida rapidamente. Desviamos a atenção e facilmente dissociamos do confronto, tensão e irritação que nos provoca, por nunca termos a oportunidade de validar e praticar a valiosa capacidade de suster os paradoxos e assumir as exigências culturalmente plantadas em nós – afinal somos mesmo boas pessoas e merecemos paz de espírito.
Por outras palavras, tudo isto pode ser sentido como uma afronta que nos faz zangar, uma teimosa pedra no sapato que “não serve para nada”, algo que nos confronta tão profundamente que morde directamente na suposta superioridade moral – mesmo quando é transparente e não a sabemos presente em nós.
Que possamos carinhosamente suster este desconforto e dar-nos colo em tudo o que não sabemos. Que possamos praticar, um dia de cada vez, abrir ao mundo sem as exigências de E-S-C-A-P-E: “Nunca seremos curados, mas podemos procurar apoio para entrar em constante recuperação.”
{artigo directamente traduzido e adaptado do texto de 2020: “Why do modern humans oppress and destroy life on Earth? And what to do about it?” de Jem Bendell da Deep Adaptation Network}
No seu artigo Jem Bendell diz:
Que os humanos modernos têm oprimido e destruído a vida na Terra é o facto observável mais óbvio e saliente do nosso tempo. Interessa-me saber quais são as razões mais profundas desse facto, por detrás dos ferimentos do colonialismo, do capitalismo, do patriarcado, do antropocentrismo e de outros semelhantes.
O “porquê” presente na psique colectiva dos seres humanos modernos, embora em graus variáveis. Jem Bendell chama-lhe a ideologia do E-S-C-A-P-E (acrónimo que, no seu desdobramento, faz sentido na versão em inglês), em que cada letra do acrónimo descreve uma forma de pensar e sentir, que co-produz a nossa cultura omnicída (agora empiricamente observável). A ideologia exprime-se através de nós devido à nossa aversão compreensível, mas problemática, à impermanência e à morte.
O direito {ENTITLEMENT} implica pensar “tens de me fazer sentir melhor”.
A certeza {SURETY} implica pensar “vou definir-te a ti e a tudo na minha experiência para me sentir mais calmo…”
O controlo {CONTROL} implica pensar “vou tentar impor-me a ti e a tudo, incluindo a mim próprio, para me sentir mais seguro”.
A autonomia {AUTONOMY} implica pensar e sentir “tenho de estar completamente separado na minha mente e no meu ser, porque de outra forma não existiria”.
O progresso {PROGRESS} implica pensar e sentir que “o futuro deve conter um legado meu, ou fazer sentido para mim agora, porque senão, quando eu morrer, morrerei ainda mais”.
O excepcionalismo {EXCEPTIONALISM} significa assumir “estou zangado com este mundo porque muito dele me perturba e por isso prefiro pensar que sou melhor e/ou necessário”.
Os humanos modernos, como eu, e provavelmente tu, estão viciados nestes padrões de pensamento e, por conseguinte, nesta ideologia do E-S-C-A-P-E. Nunca seremos curados, mas podemos procurar apoio para entrar em constante recuperação. Os padrões dão origem a atitudes como o individualismo, o nacionalismo, a religiosidade fundamentalista e as espiritualidades egoístas, bem como a sistemas como o capitalismo e o neoliberalismo.
À medida que nos apercebemos de quão má é a nossa situação atual, e de como ela é o resultado da nossa civilização e não um acidente, podemos observar esta ideologia do E-S-C-A-P-E. Podemos começar a reconhecê-la como limitadora do que podemos imaginar e de como podemos colaborar. Foi o que aconteceu a Bendell e a muitas pessoas nos domínios emergentes da adaptação profunda e da “colapsologia”.
No entanto, o facto de começarmos a reconhecer aspectos da ideologia E-S-C-A-P-E não significa que lhe escapemos. A mesma ideologia surge frequentemente em conversas e iniciativas sobre a adaptação profunda. O coletivo internacional de artes e investigação Gesturing Towards Decolonial Futures, que procura identificar e desativar hábitos coloniais de ser, dá-nos uma ideia disso. Os seus membros sugerem que certos padrões e processos mentais e emocionais estarão a acontecer na maioria de nós quando nos envolvemos em qualquer iniciativa de mudança global (ver quadro abaixo).
Exijo que sancionem o meu… |
Exijo que o ativismo climático ou a ecopsicologia & eco-mitologia… |
Exijo que o ativismo climático ou a ecopsicologia & eco-mitologia, me façam sentir… |
Direito |
satisfaça os meus desejos, esperanças e expectativas correntes. | inspirado, comovido, exultante, validado e justificado nas minhas exigências e desejos de consumo. |
Certeza |
me dê uma alternativa conhecida e garantida para o futuro. | certo, seguro, redimido, esperançoso, confortável, justo, positivo e “salvo” quando me sinto desconfortável ou frágil. |
Controlo |
permite-me ter tudo segundo os meus termos e condições. | com autoridade moral e intelectual e legitimidade para determinar o sentido, a direção e a justiça. |
Autonomia |
afirma que tudo é uma escolha minha, incluindo a interdependência e a responsabilidade. | livre de fazer escolhas e de as ver confirmadas como legítimas (independentemente das consequências para os outros). |
Progresso |
permite-me determinar o caminho a seguir de acordo com a minha visão do que é real e desejável. | que a minha vida tem/teve um objetivo e que serei recordado pelo importante legado que estou a deixar. |
Excepcionalismo |
valide a minha auto-imagem, os meus sentimentos e as minhas ideias como legítimas, únicas e indispensáveis. | digno de louvor, entronizado, exaltado e merecedor dos meus privilégios. |
Se esta ideologia é a razão pela qual os humanos modernos oprimem e destroem a vida na Terra, e se continuaremos a sucumbir a ela mesmo quando acordarmos, Bendell perguntou-se como poderíamos ajudar-nos melhor uns aos outros na nossa recuperação contínua. Por isso, perguntou à Professora Vanessa Andreotti, membro do Deep Adaptation Holding Group, e co-fundadora do Coletivo Gesturing Towards Decolonial Futures, que ofereceu a seguinte perspetiva:
“E-s-c-a-p-e pode ser visto como um padrão afetivo e relacional (de esperanças, medos e desejos) com uma superfície ideológica/intelectual. Os seus aspectos mais profundos funcionam como uma dependência (uma situação difícil) e precisam de ser constantemente observados e geridos para serem interrompidos. O próprio processo de interrupção pode depender de uma série de etapas de “acolhimento”, incluindo:
-
“chegar ao fundo do poço” e aceitar os padrões como limitando a imaginação, restringindo as possibilidades e prejudicando as relações;
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perder a satisfação com as garantias e recompensas que estes padrões oferecem;
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desenvolver a capacidade e a resistência para lidar com coisas difíceis (incluindo complexidades, incertezas, fracassos, paradoxos, desilusão, dor, morte, luto e a vergonha, culpa e inutilidade associadas à cumplicidade no dano) sem ficar irritado, sobrecarregado ou imobilizado (desinfantilizar, desarroganizar, quebrar o espelho narcísico);
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sentar-se com as coisas difíceis e compostá-las sem sobrecarregar os outros corpos, enfrentando a dor e os traumas colectivos não processados, integrando lições dolorosas como experiências de aprendizagem, comprometendo-se com o trabalho desconfortável em direção à maturidade e sobriedade individual e colectiva;
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depois desinvestir de padrões que são limitadores e/ou prejudiciais. Neste sentido, não podemos escapar ao E-s-c-a-p-e, apenas podemos aprender a desinvestir (por oposição a “investir”) dele através do discernimento e disciplina, bem como da expansão das capacidades somáticas exiladas (nos corpos individuais e colectivos/ neurogénese).”
Para citar este artigo:
BATALHA, Sofia. Ideologia de E-S-C-A-P-E. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-53/ideologia-de-e-s-c-a-p-e/, número 53, 2024; originalmente publicado aqui: https://serpentedalua.com/ideologia-de-e-s-c-a-p-e/
Que possamos carinhosamente suster este desconforto e dar-nos colo em tudo o que não sabemos. Que possamos praticar, um dia de cada vez, abrir ao mundo sem as exigências de E-S-C-A-P-E: “Nunca seremos curados, mas podemos procurar apoio para entrar em constante recuperação.”
Sofia Batalha
Eco-Mitologia e Ecopsicologia; Fundadora e Editora da Revista
Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais. Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.
Certificada em Ecopsicologia e Mitologia Aplicada pela Pacifica University, nos EUA. Identifico-me como pós-activista, fazendo parte do Advisory Board da The Emergence Network.
*Homenagear hystera. Recordar a capacidade de resposta. (des)aprender em conjunto.
Podcast Eco-Mitologia
Autora de 11 livros & 2 (Des)Formações
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🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade. Ver próximos eventos aqui.