Mitologia Criativa

Coluna de Élia Gonçalves

4 MIN DE LEITURA | Revista 53

Disseram-me as Alfarrobas,
ou a Arte da Vida que Acontece

Aquele que planta uma árvore, e sabe que nunca vai sentar-se na sua sombra, começou a entender o sentido da vida.
Rabindranath Tagore.

Depois de dois anos a viver na serra algarvia, levaram-me as circunstâncias a passar, efetivamente, mais tempo na serra. Quando ali estou, numa pequena casa de madeira no meio do nada, reaprendo o valor, a dureza e a alegria das pequenas coisas. Ir à fonte buscar água e usá-la com parcimónia. Guardar folhas verdes e cascas de vegetais para os animais. Levantar cedo para alimentar os coelhos, pois o sol das 9h30 já é demasiado quente para mim e para eles. Aproveitar a ansiada frescura dos finais de dia e as noites tão estreladas que brilham por cima de mim.
Neste espaço e tempo em que as projeções e idealizações desaparecem e faz-se o que há para fazer, surge uma ausência de complexidade mental e emocional que me fascina. Os tão ansiados lugares mindfulness, aqui e agora, e presença deixam de ser metas a atingir para se tornarem num verdadeiro “é o que é”.

Os pensamentos deambulam, naturalmente. Dias com mais tempo do que outros. Manhãs em que o calor me retira a capacidade de estar por inteiro. Ainda assim, soa-me tão diferente da minha própria casa, com tarefas também, mas repleta de complexidades e padrões de pensamento, uso exacerbado do mental, computadores e afins.

Não que a comparação seja válida, pois preciso também dessa complexidade, seja por vontade ou hábito. Mas ali, no meio do “nada”, a não ser a vida em cru que acontece, perco importância. Talvez seja essa a chave. Os meus pensamentos complicados, as minhas emoções intrincadas, os “e se” e os processos pessoais, reais, imaginados, aditivos, perdem poder. Neste espaço, simplesmente existo e faço o que há para fazer, guiando-me pelo calor, pelas estrelas, pelos meus companheiros animais que reconhecem os meus passos e o cheiro das ripas de pepino que lhes ofereço por entre as rações. Canso-me quando o corpo diz chega e aguardo a chegada do ocaso para regressar à ação. O que se faz nos entretantos? Dorme-se, lê-se ou contempla-se a paisagem de verdes secos e curvas sinuosas. Vai-se estando, como se diz nestas terras.
No outro dia resolvi apanhar alfarrobas. Já me olhavam desde o chão há muitos dias. Já lhes tinha piscado o olho e comido uma ou outra. Mas quando me decidi e peguei no saco, dei-me conta da imensidão de vagens que se espalhavam pela terra, e mesmo pela estrada de terra batida, mais abaixo.

Escolhi apanhar as que já estavam no chão, deixando algumas para serem alimento, de animais ou da própria terra. E, decidida, comecei, sem perceber que entrava numa viagem tão intensa quanto apaixonante.

Apercebi-me da sombra e da frescura por baixo dos longos ramos daquela árvore tão antiga, com folhas verdejantes e frescas, apesar do calor de Julho. Um dia de calor imenso e uma árvore que sobrevive na perfeição e emana esconderijo e sombra para quem, como eu, necessita dessa proteção. Chegou-me um sentimento de gratidão imensa que se estendeu na perceção da generosidade da alfarrobeira. Repleta de vagens negras e com todo um chão cheio das suas oferendas. À alfarrobeira, presumo eu, não lhe interessa muito a ideia de que as alfarrobas são suas e que outros têm acesso a elas. Elas estão ali, nascem, crescem, amadurecem e caem na terra, ficando disponíveis para a vida dos que se alimentam delas. E nesse respirar, a vida acontece. Outras estações passarão e novas vagens vão surgir, nascer e amadurecer.

Naquela manhã, enquanto colhia o que a alfarrobeira me oferecia e me resguardava do calor na sua sombra, comovi-me com a simplicidade crua da vida, com a partilha do que temos e com a expansão da teia que nos mantém a todos.
Recordei uma história do Talmud. Nela, o sábio Honi pondera se é possível sonhar com algo por 70 anos e encontra um velho que planta um pé de alfarrobeira. Ao saber que os seus frutos só chegarão 70 anos depois, pergunta ao ancião se este acredita continuar vivo para os provar. A resposta que obtém é: “Encontrei este mundo plantado com alfarrobeiras. Assim como os meus antepassados as plantaram para mim, eu também as plantarei para os meus descendentes.”
Depois de dormir durante 70 anos, o sábio desperta para encontrar o neto do ancião a colher alfarrobas.

Na verdade, a alfarrobeira demora, não 70 anos, mais de uma década a dar frutos. E sei que o ancião que plantou a minha alfarrobeira já não é vivo. Porém, as vagens continuam a crescer, amadurecer e cair no chão, disponíveis para quem os saborear.
Nesta senda das minhas alfarrobas, que dias depois voltaram a forrar o chão de negro, acredito completamente que não é o que colhemos que conta, mas sim o que plantamos. Sabendo que, na maioria das vezes, não será para nós.
Mas que a teia é feita nesses gestos de plantar. De fazer o que há para fazer. De agradecer a vida que generosamente nos acolhe e também nos leva.
O amor é algo subtil e feito de muitas coisas diferentes. Nos pequeninos coelhos que me reconhecem. Nas alfarrobas que me são oferecidas. No vento que me despenteia e me traz brisa fresca no verão. No céu brilhante que me fascina. Na comoção que me abarca quando me permito perder importância. E, nesse ato, saber-me pertença.

Para citar este artigo:

GONÇALVES, Élia. Disseram-me as Alfarrobas. Vento e Água – Ritmos da Terra,https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-53/disseram-me-as-alfarrobas/, número 53, 2024

Na verdade, a alfarrobeira demora, não 70 anos, mais de uma década a dar frutos. E sei que o ancião que plantou a minha alfarrobeira já não é vivo. Porém, as vagens continuam a crescer, amadurecer e cair no chão, disponíveis para quem os saborear.
Nesta senda das minhas alfarrobas, que dias depois voltaram a forrar o chão de negro, acredito completamente que não é o que colhemos que conta, mas sim o que plantamos. Sabendo que, na maioria das vezes, não será para nós.
Mas que a teia é feita nesses gestos de plantar. De fazer o que há para fazer. De agradecer a vida que generosamente nos acolhe e também nos leva.

Élia Gonçalves

Élia Gonçalves

Colunista e Autora regular da Revista

Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal

Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia

elia.gonçalves@escolatranspessoal.com