No Espetro – Neurodiversidade

e Justiça Social

Coluna de Fátima Marques

4 MIN DE LEITURA |Revista 53

Demasiado bom para este mundo

 

 

Quando alguém que é considerado “especial” morre, é comum ouvir dizer que era demasiado bom para este mundo. 

Irrita-me profundamente que se normalize a forma como “o mundo” destroi as pessoas que de alguma forma não se encaixam. 

Uma porque não são suficientemente boas, outras por serem boas demais. Aparentemente há uma conta certa para se ser. 

Se calhar é a isso que se chama neurotípico. A quem encaixa nessa faixa fininha. E por encaixar nela o mundo se curva a seus pés. 

Há sempre tamanho de sapato, roupa que sirva, amigos, empregos, tudo feito por medida. 

Enquanto outras pessoas têm que mandar fazer tudo por encomenda. As que têm sorte, as outras andam com sapatos apertados ou roupa a cair do corpo e amigos que não as compreendem.. 

No dia 22 de Julho é o aniversário do Tomé, o Tomé era aparentemente demasiado bom para este mundo. E há 10 passou para outro. 

Este ano farão 28 anos que eu pari o Tomé. 

Foi um parto feliz, eu estava a rir quando ele nasceu e quando me deixarem sozinha com ele, quando ninguém estava a ver, lambi-o porque ele era a minha pequenina cria e fazia sentido. Queria saber a que é que ele sabia. Queria saber tudo sobre ele. 

E o Tomé cresceu normal para mim, mas aparentemente não para o mundo. Era demasiado sensível. Importava-se demais com as injustiças. Era demasiado livre.

Eu vi-o crescer e tentei de todas as formas protegê-lo dos adultos que o queriam formatar. Era fácil compreende-lo, era fácil comunicarmos porque eu também sou como ele. 

Vão fazer este ano 10 anos que o Tomé morreu. Na altura criei um blogue que depois foi um livro e um dos textos chamava-se “Há muitos Tomés por aí”. 

E é isso, o Tomé não é um caso isolado, eu não sou um caso isolado. Há muitos de nós por aí a tentar fazer um quadrado encaixar num círculo. A tentar mascarar-nos de neurotípicos. E a queimar-nos no caminho. 

Depois da morte do Tomé muita coisa aconteceu. Não o que eu previa. Não é sempre assim? 

Trabalhei em escolas e parei porque não havia o apoio necessário. Aqueles alunos eram demasiado complexos para a escola. E a escola só tem espaço para o normal.

Achei que no mínimo o meu amor ao Tomé só podia mudar o mundo. Que a história dele ia acordar as pessoas, que iam abrir o coração, mas não foi assim. 

Perdi muitas ilusões e foi duro. Está a ser. 

Antes da queda do Tomé eu vi o risco e avisei muita gente. Pedi ajuda. E todos me disseram que eu estava a exagerar. Eu vi o problema, sabia parcialmente a solução, mas não dependia só de mim e acabou como acabou. 

Agora sinto muitas vezes a mesma coisa. Vejo o problema, vejo que não é por ali, vejo um caminho melhor, mas não depende só de mim. Há uma máquina social, um sistema imenso que parece um comboio a todo o vapor a descarrilar. 

Ao longo do tempo fui escavando, procurando e encontrei muitas respostas. Também não foram as que esperava. Foram coisas como neurodiversidade, sistemas de opressão, colonialismo. Foi compreendendo como o bullying institucional funciona, como funcionam as pequenas agressões. 

E fui reforçando a consciência sobre a necessidade de tribo. 

Vivemos num sistema que se alimenta e cresce da nossa infelicidade, que inviabiliza o bem estar. Que nos oferece um sem fim de coisas inúteis, nos distrai com elas e ao mesmo tempo nos priva das coisas essenciais, daquelas sem as quais não temos como ser felizes: sítios onde brincar, onde falar do que sentimos, onde nos sentirmos em segurança e podermos pousar o coração. 

Não tenho grande fantasia de que a vida no geral tenha sido fácil no passado. Mas não me parece que fácil seja a questão ou difícil o problema. 

A morte do Tomé foi o evento mais traumático e difícil da minha vida, mas não foi o mais infeliz. No mês a seguir nunca me senti sozinha. Senti-me sempre sustida. Foi um momento mágico. Senti-me preenchida e segura. Em dor, em luto, mas preenchida e segura. Não foram contradições. 

Esse mês foi uma suspensão da realidade. Foi um momento que recordo com muito amor. Muito riso e muito choro, muitas vezes ao mesmo tempo. Foi um tempo real. 

Só lamento que a vida “real” tenha chegado e atropelado a magia. 

E que eu ainda me sinta maioritariamente no vazio dez anos depois. 

Há muitos Tomés por aí. E não são bons demais para este mundo. Este mundo é que é mau demais para eles. É o mundo que tem que esticar para os incluir, porque fazem falta. Não podemos dar-nos ao luxo de os destruir de várias formas antes de poderem afetar o mundo. 

É muito difícil para mim, sobretudo sendo autista e obcecada com “a verdade”, assumir um projeto de homenagem ao Tomé. Nunca vou ter a certeza se estou a ser fiel ao sonho dele, se ele concordaria, se estou a fazer a coisa certa. 

É duro, e é cansativo, confuso. E ainda assim cá estou eu. A reclamar que seja cada vez mais fácil e mais claro. A aprender a defender o meu chão. A nossa singularidade, minha, dele e de muitos outros. 

Este mundo também não foi feito para mim. Dói-me. Arranha. É ora demais, ora de menos. Não sei se alguma vez me vou sentir segura e preenchida nele mais do que por breves momentos. Se alguma vez vou sentir que realmente pertenço. Mas tenho esta vontade de ser cada vez mais real. 

Se também te sentes como eu, não há nada de errado contigo. A ansiedade, a depressão, o cansaço, e todos os outros sintomas, não são uma fraqueza, são uma resposta saudável a um ambiente doente. 

Podes procurar os outros como tu. Se quiseres cria bolhas de cuidado recíproco, bolhas de advocacia, de defesa dos teus direitos. Bolhas de honestidade e aceitação. Sobretudo se puderes e quiseres, cria bolhas de alegria e de brincadeira sempre que tenhas uma oportunidade. 

Se quiseres juntar-te a nós ou saber mais sobre o que fazemos, o nosso trabalho está aberto a todos, independentemente das condições sócio-económicas. 

Vamos criar pequenos mundos que sejam suficientemente bons para nós e para os que chegaram depois de nós. Onde mais ninguém morra por ser “bom demais para este mundo”. 

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Para citar este artigo:

MARQUES, Fátima. Demasiado bom para este mundo. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-53/demasiado-bom-para-este-mundo/ , número 53, 2024

Vivemos num sistema que se alimenta e cresce da nossa infelicidade, que inviabiliza o bem estar. Que nos oferece um sem fim de coisas inúteis, nos distrai com elas e ao mesmo tempo nos priva das coisas essenciais, daquelas sem as quais não temos como ser felizes: sítios onde brincar, onde falar do que sentimos, onde nos sentirmos em segurança e podermos pousar o coração. 

Fátima Marques

Fátima Marques

Fundadora dos projetos Co.mover.se e Saúde Para Todos.

Acredita no potencial curativo
de trazer à luz as dinâmicas
ocultas dos relacionamentos, e
na transformação dos ciclos de
violência em ciclos de empatia.

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