artigo de Dulcineia Pinto

As Entranhas

6 MIN DE LEITURA | Revista 53

Subo a ladeira do monte e chego ao topo sem saber o que vou encontrar. Avisto as ruínas de Las Medulas, como muitas vezes, observei nas fotografias que populam na internet e senti o assombro no centro do peito. Foi inevitável a selfie e todos os turistas que ali estavam fizeram o mesmo.

A sensação de ver aquela paisagem foi avassaladora e, por isso, ávida por mais, desci, apressadamente, o caminho para realizar a visita guiada que partia de um dos centros interpretativos. A minha guia, uma mulher de cerca de 50 anos, bonita e ágil, seguia pelo percurso fazendo oscilar os seus brincos de ouro. Intercaladas com o seu sorriso, as palavras contavam a história do local, onde se misturava o passado longínquo com 2 milénios e o presente construído pelas pessoas que ainda vivem nas aldeias limítrofes e que são as proprietárias dos terrenos e dos muitos castanheiros presentes nas ruínas. Os castanheiros de grande porte impõem-se na paisagem, constituem o manto verde que entra em contraste com as terras vermelhas que compõem os sedimentos de Las Medulas.

Visitar Las Medulas é como visitar um cemitério, bonito, silencioso e povoado de espíritos, contudo não posso esquecer toda a dor, mágoa e luto que o compõe. À medida que escrevo, resignifico muitas das palavras ditas pela Rosa, a minha guia, de como os indígenas se identificavam com o monte, eram o monte e da forma como me senti, frustrada e enraivecida pelos romanos que o destruíram.

A paisagem cultural de Las Medulas está classificada como Património Mundial da UNESCO desde 1997, é o melhor exemplo de uma técnica mineira utilizada pelos romanos para a extração do ouro naquele tipo de depósito. A ruina montium significou a ruína do monte utilizando a força da água conduzida por canais com mais de 600 km de extensão. Uma obra gigantesca, fruto de esforços coletivos e individuais e que mereceu a atenção dos decisores políticos do presente.

Para os indígenas de há 2 milénios, a ruína do monte pode ter tido múltiplos significados e alguns deles, a seu tempo podem ter-se materializado em trauma coletivo. Contar uma história do passado não é só difícil, é parcelar e, por isso, a que aqui trago é apenas uma parcela do espectro que um dia foi visível.

Em 218 a.C. os romanos entram na Península Ibérica e iniciam um processo de romanização, que mais não é do que o controlo efetivo de um território (suas gentes e recursos) que não lhes pertencia. Em cerca de 20 a.C. chegam ao último reduto de território indígena, o norte da Cantábria, onde grosso modo, podemos incluir Las Medulas. Nas guerras cântabras, os povos ástures e cântabros unem-se no Monte Medulio e preferem a morte, com fogo e ferro, ou através da comida, com um veneno extraído do teixo, ao invés daquilo que lhes parecia intolerável, a submissão, a escravatura, a perda de identidade. Para alguns autores o Monte Medulio é as Medulas, para outros, existem outras opções.

É sabido e aceite que estes povos acreditavam na sacralidade dos montes, ali viviam deuses, alguma vezes, vivia um deus particular, o da tormenta, dos raios, da lança e da guerra. Na mitologia romana, que tem uma evolução própria, o deus da tormenta transformar-se-á, a seu tempo, no deus maior, Júpiter, mas para os indígenas este deus dos montes integrava-se ainda na trilogia primitiva de cariz indoeuropeu, e assim é o deus da guerra, Marte. O deus do caos, do fulgor guerreiro, que luta individualmente, participa, coordena batalhas, tem um séquito que o segue, os seus filhos, os filhos da guerra.

Neste território será nomeado de Cosus, aparece em várias epígrafes votivas com epítetos particulares apontando para determinadas características do deus. E, como em todas as mitologias, o deus terá muitas características que vão oscilando consoante o território, o tempo ou o povo que o nomeou. Em alguns lugares, é o deus entronizado semelhante a Júpiter, noutros, sobressai o seu carácter brilhante, resplandecente e ardente, mas também a sua vinculação aos céus, à tormenta, aos raios, sendo evidente a sua relação com o brilho, o metal, com aquilo que cintila.

Nas Medulas, nomeadamente em El Bierzo (um povoado perto), a epigrafe encontrada refere Cossuenidoiedius e Cossuesegidiaecus onde a raíz da palavra *segh, *seghi remete para sujeitar, vencer e *seghos para vitória. Aqui Cosus, é o herói mítico que vence, sujeita o inimigo, o paralisa, numa ação mágica característica também deste deus primitivo. É um deus exigente, a ele se fazem sacrifícios humanos e através destes se advinhavam futuros de suma importância.

A etimologia da palavra medullis remete para entranhas. Medula (em latim medulla) significa “tutano”, “miolo”, “a medula do osso” e, metaforicamente por extensão, “as entranhas”, “a parte interior de algo”. Em Las Medulas residia o interior de algo, a ruina montium não cavou apenas as entranhas da terra mas também o interior do próprio deus fulgurante.

No início do século I d. C., após o fim das guerras cântabras que duraram cerca de 20 anos e com o território controlado, os romanos iniciaram a exploração em grande escala do ouro de Las Medulas, mantendo-a durante cerca de 2 séculos. Até àquele momento, a exploração do minério tinha sido feita apenas por peneiração nos rios, nomeadamente no rio Sil, respeitando o que o deus, generosamente, oferecia.

À medida que o monte ruía, os indígenas viram o seu deus agonizar, as terras vermelhas recordavam a cor primordial do deus da guerra, o ouro que se viam obrigados a peneirar lembrava-lhes o brilho dos raios e das lanças por ele utilizados. Os depósitos mais ricos em ouro localizavam-se na base do monte, era preciso esventrá-lo, ir bem fundo, para que a exploração fosse rentável. As revoltas guerreiras transformaram-se em memórias e o deus da insubmissão, vitória e soberania foi sujeito à agonia da morte pelos novos filhos de Marte.

No monte Medulio morreram os últimos revoltosos astures e cantabros, os restantes submeteram-se à nova ordem. Na sociedade indígena aqueles que lutavam não eram só guerreiros, eram os filhos do próprio deus, o séquito que o seguia na batalha, aqueles que almejavam a vitória e que a asseguravam para os outros membros do grupo. A sua morte foi o augúrio que o seu deus se tinha silenciado ou que tinha escolhido outros filhos.

A gestão territorial e económica de Las Medulas foi assaz complexa sendo conhecida, por inferência, através das várias minerações realizadas em território peninsular. Advinha-se uma gestão controlada pelo Estado Romano, mas suficientemente fluída para existir alguma privatização. A mão de obra eram os habitantes locais livres cuja jornada de trabalho era entendida como parte da tributação devida ao Estado, gerida por uma aristocracia local que servia de intermediação entre o Estado e os indígenas. Estas, em conjunto com a Legião VII Gemina, garantiam a pacificação e submetimento dos territórios e suas gentes. A exploração seria ininterrupta, noutros locais os poços de mineração não poderiam estar parados mais de 10 dias, sendo perdida a sua concessão. A pressão social, económica e cultural nos territórios de mineração materializa-se numa forte latinização das estruturas individuais (por exemplo, na onomástica) e coletivas (nos povoados marcados por uma forte diferenciação funcional), contrariando, assim, formas comunitárias campesinas de ordenação do espaço, autossuficientes e não hierarquizadas.

Após 200 anos a exploração cessou. São várias as razões apontadas para o fecho da exploração (dificuldades para conseguir mão de obra especializada; desvalorização do ouro após as sucessivas crises monetárias dos séculos II e III d. C e / ou pelo esgotamento dos filões após a exploração intensa e seletiva) mas nenhuma delas é explicativa do abandono total da área em todos os períodos sociais, económicos e culturais que lhe seguiram. Outros locais foram explorados na Idade Média, outros são explorados na atualidade, contudo, a exploração de Las Medulas fechou para sempre.

À medida que percorria o caminho, seguindo a minha guia, olhava os castanheiros, árvore autóctone presente no território há milhares de anos. Essas árvores indígenas guardam as entranhas do deus morto, submetido e esquecido, com os seus ramos saúdam os turistas, as suas castanhas alimentam os incautos. Cravadas no território lembram aqueles subterrados pelas terras, que não fugiram a tempo do derrube estrondoso; os que romperam as mãos de tanto lavarem o minério nas esteiras de flutuação e os que com um novo nome latino construíram a sua identidade.

O deus vermelho agoniza ainda quando as terras desmoronam fruto da erosão. De longe observo as suas entranhas e penso que não morreu, os deuses são difíceis de matar.

Bibliografia

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  • DESERTO, Jorge; PEREIRA, Susana da Hora Marques. Estrabão. Geografia. Livro III: Introdução, tradução do grego e notas. Imprensa da Universidade de Coimbra/Coimbra University Press, 2016.
  • FERNÁNDEZ-ALBALAT, Blanca G.; GARCÍA FERNÁNDEZ ALBALAT, Blanca. Guerra y religión en la Gallaecia y la Lusitania antiguas. Ediciós do Castro, 1990.
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  • Imagem do artigo daqui: https://media.iatiseguros.pt/wp-content/uploads/sites/2/2019/01/gruta-las-medulas-leon.jpg

Para citar este artigo:

PINTO, Dulcineia. Noite. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-53/as-entranhas ,número 53, 2024

Em 218 a.C. os romanos entram na Península Ibérica e iniciam um processo de romanização, que mais não é do que o controlo efetivo de um território (suas gentes e recursos) que não lhes pertencia. Em cerca de 20 a.C. chegam ao último reduto de território indígena, o norte da Cantábria, onde grosso modo, podemos incluir Las Medulas. Nas guerras cântabras, os povos ástures e cântabros unem-se no Monte Medulio e preferem a morte, com fogo e ferro, ou através da comida, com um veneno extraído do teixo, ao invés daquilo que lhes parecia intolerável, a submissão, a escravatura, a perda de identidade.

Dulcineia Pinto

Dulcineia Pinto

INVESTIGADORA DO SENTIR HUMANO

Arqueóloga de formação, investigadora histórica por paixão, artemanualista nos tempos curtos e ativista pela educação nos restantes. Todos juntos ou em dissociação contribuem para os mergulhos no sentir humano.

Encontra-se no espaço sideral os meus artigos. Converso regularmente com a Nina Veiga no Navegar é preciso. Instagram.