Ecoespiritualidade

Coluna de Jorge Moreira

4 MIN DE LEITURA | Revista 51

Uma Liberdade Mais Profunda

Nos 50 anos do 25 de abril

Ah! Que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições. Ninguém me diga «vem por aqui!».

A minha vida é um vendaval que se soltou, é uma onda que se alevantou, é um átomo a mais que se animou…

Salgueiro Maia

{In Sousa Duarte, A. 1995. Salgueiro Maia – um Homem da Liberdade, Círculo de Leitores. p. 136.}

A memória que tenho do 25 de abril é vaga. Lembro-me de estar a frequentar a escola primária, numa turma exclusivamente de meninos – como era habitual na altura – e de uma forma inesperada, no meio da aula, fomos todos enviados para casa, por causa de uma revolução. Nem sabia bem o que isso significava. Mas sabia bem não ter escola o resto do dia, face à minha aversão pela postura despótica que existia no local. A revolução foi fazendo sentido, especialmente quando as histórias começaram a surgir livres dos tormentos da PIDE e a escola passou a integrar meninos e meninas nos mesmos espaços e brincadeiras. Mais tarde fui aprendendo o significado mais amplo de abril – a liberdade.

A história mostrou-me os horrores provocados por muitos reis e imperadores, dos sistemas fascistas e comunistas… do holocausto Nazi. Ainda acompanhei com olhar crítico as amarras e os tumultos políticos dos últimos 50 anos e estou incrédulo com uma série de acontecimentos da atualidade, donde destaco a nível político, a subida da extrema-direita e dos populismos um pouco por todo o mundo, as novas ânsias colonialistas e imperialistas, os genocídios promovidos por quem já foi vítima do mesmo mal e a inoperância dos governos perante a ameaça ecológica e climática. Por cá, acho incompreensível que nos 50 anos de abril se tenha elegido 50 deputados saudosistas. Disse uma vez Salgueiro Maia, já no crepúsculo da sua prematura partida: “Não se preocupem com o local onde sepultar o meu corpo. Preocupem-se é com aqueles que querem sepultar o que ajudei a construir”.

Tive a feliz oportunidade de ter efetuado parte do meu serviço militar obrigatório, sobre o comando do então Tenente-Coronel Salgueiro Maia, na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Foi aí que tomei conhecimento mais profundo da dimensão histórica deste quartel e dos princípios subjacentes ao 25 de abril, assim como do carácter, a intrepidez, o sentido de dever e a humanidade em Salgueiro Maia. Um humano que esteve na guerra em ultramar e incompatibilizou-se com as razões desta, enfrentou os ditadores e entregou o poder ao povo, (quase) sem derramamento de sangue. Não esteve sozinho na altura, mas pela sua coragem se fez uma revolução como nunca vista no mundo!

Portugal passou de ‘um lugar de escravos a uma pátria de cravos’.

{Relato de dois jornalistas espanhóis, segundo O Diário de Notícias (https://www.dn.pt/edicao-do-dia/30-jun-2019/25-de-abril-a-revolucao-que-nao-foi-assim-tao-branda-11056529.html/)}.

Mas a grandeza de salgueiro Maia não foi bem vista pelos que da mesquinhez e ciúme se regem na vida e foi ostracizado dentro e fora da instituição militar. As ameaças de morte eram frequentes, mas mantinha a sua postura corajosa. Este caldo ou talvez o ensejo por compreender melhor o (H)homem, poderá ter potenciado os seus estudos académicos, ao enveredar por uma licenciatura em Ciências políticas e Sociais e, posteriormente, em Ciências Antropológicas e Etnológicas. Ao contrário do que muitos desejavam, Salgueiro Maia foi livre ao desempenhar o seu dever mais profundo para com o povo português e africano, ajudando-os a libertarem-se da ditadura e dos colonialismos e imperialismos em voga, mesmo que tal o obrigasse a desobedecer às suas hierarquias, e foi livre em não tomar partido(s) após a instauração da democracia em Portugal.

O conceito principal que subjaz ao 25 de abril é a liberdade. De uma forma geral, liberdade é algo que não está preso, confinado. Seria interessante não limitarmos muito a sua aceção, mas a etimologia da palavra, que deriva do latim, libertas, significa a condição do indivíduo em poder realizar as suas escolhas autonomamente e de acordo com a sua vontade. Nas palavras de Salgueiro Maia: “Ninguém me diga «vem por aqui!»”. Mas, pode-se colocar a pergunta: e quando a liberdade de uns interfere com a liberdade dos outros? Talvez seja importante chamar os argumentos do filósofo John Locke, onde a liberdade se encontra entrelaçada com o direito à vida e à propriedade. Ou talvez evocarmos os princípios maçónicos que estiveram por detrás da Revolução Francesa, em que a liberdade, igualdade e fraternidade compunham uma tríada inseparável. Todavia, com o despertar da consciência ecológica, não podemos restringir a liberdade como um direito fundamental dos humanos. Para este ponto evoco Agostinho da Silva:

“[…] uma boa definição de homem, para além de suas limitações físicas, seria a de que é um ser de embrionária liberdade, cujo dever, cujo destino e cuja justificação é o da liberdade plena; plena para ele, plena para os outros, plena para os animais, plena para ervas, plena talvez até para seixo e montanha.”

– Agostinho da Silva. 1970. “Nota a Cinco Fascículos”.  Textos e Ensaios Filosóficos II. pp. 262-263.

Para mim, a liberdade encontra-se com Agostinho da Silva. Ela é a expressão da nossa verdadeira Natureza, ilimitada, integradora, fraterna. Seremos verdadeiramente livres quando acabarmos com todas as fronteiras – de cor da pele, religião, género, espécie ou com a Natureza. Uma ideia de liberdade que não inclua o outro é a maior prisão que se pode ter. O leito da morte clarifica o desespero daqueles que seguiram o caminho do ego.

A minha liberdade

É a liberdade do outro,

Porque não há o outro.

Somos uma Humanidade,

Somos uma Terra.

Parte da liberdade já foi conquistada em abril, mas ainda falta libertarmo-nos de uma economia que nos consome e da gente que está na sua retaguarda. Falta também fazer com que a liberdade seja uma realidade na vida dos humanos mais desfavorecidos, das mulheres, dos outros géneros e etnias, dos não humanos e dos mais-que-humanos. Não só falta, como a outra parte da liberdade que já foi conquistada em abril, está novamente ameaçada pelos populismos e pela extrema-direita. E quanto a isto, é um imperativo ético lutar novamente com cravos, juntando rosas, margaridas e lírios, contra quem quer ver novamente a mulher e a Natureza subjugada ao homem e as minorias esmagadas. Quando Salgueiro Maia se encontrava na guerra colonial e foi avisado por um militar amigo para não se meter em conspirações, Maia respondeu-lhe: “Andamos a ter cuidado há anos. E olha onde viemos parar…” {in: https://visao.pt/atualidade/cultura/2022-04-13-salgueiro-maia-como-nunca-o-vimos/}

Parece que esquecemos os momentos dramáticos em que a liberdade era calada pela tortura e estamos a olvidar aqueles que tiveram a coragem de dar as suas vidas para que a liberdade fosse um direito fundamental!

Liberdade para todos os seres!

Viva a Liberdade!

Para citar este artigo:

MOREIRA, Jorge. Uma liberdade mais profunda. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-51/uma-liberdade-mais-profunda/, número 51, 2024

Parte da liberdade já foi conquistada em abril, mas ainda falta libertarmo-nos de uma economia que nos consome e da gente que está na sua retaguarda. Falta também fazer com que a liberdade seja uma realidade na vida dos humanos mais desfavorecidos, das mulheres, dos outros géneros e etnias, dos não humanos e dos mais-que-humanos. Não só falta, como a outra parte da liberdade que já foi conquistada em abril, está novamente ameaçada pelos populismos e pela extrema-direita. E quanto a isto, é um imperativo ético lutar novamente com cravos, juntando rosas, margaridas e lírios, contra quem quer ver novamente a mulher e a Natureza subjugada ao homem e as minorias esmagadas

Jorge Moreira

Jorge Moreira

Ambientalista e Investigador

Licenciado em Ciências do Ambiente, Minor em Conservação do Património Natural, mestre em Cidadania Ambiental e Participação, pela Universidade Aberta, e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É bolseiro FCT e investigador do Centre for Functional Ecology, Science for People & the Planet da Universidade de Coimbra.
É vice-presidente da FAPAS - Associação Ambientalista para a Conservação da Biodiversidade; dirigente da Sociedade de Ética Ambiental, dos movimentos cívicos Alvorecer Florestal e Aliança pela Floresta Autóctone.
É autor de vários artigos dedicados ao ambiente e voluntário em inúmeras ações de defesa, conservação, promoção e recuperação do património natural.
Tem desenvolvido investigação nas áreas da Ética Ambiental, Educação Ambiental, Sustentabilidade, Alterações Climáticas, Ecologia Profunda e Ecologia Espiritual, onde tem realizado conferências e promovido os temas.

shakti@sapo.pt