O Canto do Verbo
Coluna de Ana Alpande
Chá de Urtigas
Dona Extinção e Senhorita Identidade
Nos workshops do Chá de Urtigas: haverá nova edição já no dia 19 de Setembro às 19.30h, com Ana Alpande. O tema é Chá de Urtigas – Dona Extinção e senhorita Identidade. Segue o link para te registares.
5 MIN DE LEITURA | Revista 51
Todas As Conversas Que Não Temos Sobre A Morte Roubam-nos A Vida
“Eu sei que nunca quiseste estar neste mundo.
Mas mesmo assim estás nele.
por isso, porque não começar imediatamente?
Quero dizer, a pertencer a ele.”
Mary Oliver, tradução livre
Comecei o ano de 2024 com a notícia de três mortes, 3 mulheres que cada uma à sua maneira pertencem à minha teia de relações: a Marília nos 40, a Sandra nos 50, a Karen nos 60. Seria totalmente plausível e até expectável referir-me às suas mortes com expressões como: “o cancro levou-as cedo demais”, “foram vítimas da grande doença”, “lutaram muito mas o cancro venceu”. Posso dizer que as 3 morreram de cancro, mas a verdade é que as três morreram de morte, tal como eu e tu, morreremos num certo dia, numa certa hora, num certo lugar. O corpo não morre da doença, mas sim quando o corpo para (Jenkinson, 2015), quando a morte com o seu beijo gélido embala-o no grande sono.
É difícil parar para contemplar que talvez não sejam as doenças e os desastres que nos matam, mas a decisão misteriosa e autónoma do corpo parar. É desafiante porque construímos todo um propósito cultural cheio de valor e sentido à volta da premissa de que a nossa função, enquanto civilização, é proteger-nos do sofrimento e da morte. Quem seremos nós se essa deixar de ser a nossa principal função? E como encontrar espaço para uma pergunta como esta, quando somos atravessados pela malha apertada da modernidade, que confundiu o principal significado da vida com a conquista do conforto e da estabilidade, que se projecta de forma tão violenta, na urgência do fazer associado à ideia da salvação do sofrimento. A morte habita-nos, todos os dias, nos milhares de processos orgânicos que ocorrem dentro de nós. Na verdade, se o corpo não soubesse autonomamente quando parar, neste constante treino para a derradeira entrega ao desconhecido, não estaríamos vivos.
A nossa morte é o grande momento para o qual o nosso corpo anda a treinar-se desde o dia em que nascemos (Jenkinson, 2015).
Encontrei no poema O Quarto Signo do Zodíaco da Mary Oliver o abraço que me amparou, enquanto fazia a digestão dos vários paradoxos internos, em conflito com estas mortes tão próximas. Oliver escreveu este poema quando descobriu que tinha cancro, e o poema começa com ela a perguntar a si mesma: “Porque haveria eu de ficar surpreendida? Caçadores entram pela floresta sem fazer qualquer ruído (…) assim como o cancro entrou pela floresta do meu corpo”. É qualquer coisa de extraordinária esta comparação: o caçador a entrar furtivamente numa floresta para caçar uma raposa ou uma serpente, com o cancro que entra na floresta de um corpo, esta equivalência entre corpos humanos e não humanos, para mim, devolve a dignidade a ambas as florestas, a invadida pelo caçador, a invadida pelo cancro, e até mesmo para os próprios caçadores, que apenas reproduzem o que foram ensinados a fazer dentro do grande ciclo da vida. Mary quebra de uma forma muito elegante o triângulo dramático (Karpman, 2014) de vítima/perpetuador/salvador. Este poema é uma ode fenomenológica ao sofrimento e por isso mesmo um antídoto para a evitação do tema da morte e do declínio, que me fez muita companhia nos primeiros meses do ano.
A primeira vez que fui à procura de poesia para dar sentido à morte foi por volta da altura em que o meu pai morreu, com algo fulminante que nunca foi diagnosticado. Saiu de casa com uma febre alta de madrugada para ir ao hospital e faleceu em 24 horas. Eu tinha 13 anos.
Nessa altura foi o livro An American Prayer do Jim Morrison que me trouxe palavras para legendar o que eu não conseguia compreender.
“Death makes angels of us all
and gives us wings where we had shoulders
smooth as Ravens claws.”
Neste verso encontrei aqueles que viriam a ser as primeiras possibilidades de desenvolver uma estética que abrace o paradoxo da morte enquanto parte da vida.
Depois de utilizar todo o poema para engrandecer a grande despedida, Jim termina com uma facada de realidade: “não irei, prefiro uma festa entre amigos à grande família”. E foi aqui aos treze anos, com o Jim e o choque da partida do meu pai, que dei o primeiro passo na possibilidade de começar a perceber a morte enquanto a força motora da grande complexidade da vida. Desde então que vivo com a imagem da festa entre amigos e a mesa gigante da grande família.
Questões acerca da morte não se colocam levianamente em praça pública, especialmente durante a adolescência ou nos primeiros anos da vida adulta, quando a tua pele é firme e os músculos gritam de saúde e curiosidade, não podes juntar o jantar com amigos ao jantar eterno. Talvez o mais dramático é que a morte não é só um tabu para os jovens que precisam de palavras e significados para as suas experiências de dor e luto, o tema da morte também é tabu para quem está a morrer e esta talvez seja das maiores crueldades da cultura moderna.
O Herói moderno é jovem, super saudável, e é completamente responsável pela sua saúde e bem estar, investe considerável parte do seu tempo na sua qualidade de vida e é competente, autónomo e curioso, não necessariamente uma curiosidade interessada na vida, mas sim em como controlar o fluxo da vida, seja para se curar de um cancro ou até mesmo, salvar uma floresta. Ideais nobres, mas isolados do grande mistério da vida podem ser bastante perigosos.
Esta imagem é nossa, habita-nos com o seu escudo e a sua espada, constantemente a empurrar a fraqueza, a incerteza, a fragilidade ou a morte para os calabouços da nossa psique.
Quando alguém morre de cancro, não morre da lei natural da vida, da única certeza que todos temos, um dia o corpo é beijado pela morte seja com que desculpa for, simplesmente para. Em vez disso, morre do inimigo com quem a batalha foi perdida, logo a própria integridade do indivíduo é vencida. A floresta fica reduzida a um aglomerado de árvores sem inteligência, mortas porque o seu salvador foi incapaz de as proteger, os médicos, ou o auto-desenvolvimento insuficientes para a salvar. Com isto, toda a inteligência adaptativa de milhões de anos e a resiliência conectiva do grande mistério da nossa biologia evolutiva ficam do lado de fora, seja daquele corpo humano ou floresta que perdeu a batalha, por isso retirados do quadro de mérito dos vencedores. Quem são estes vencedores mesmo? Não sabemos, mas ainda assim vamos redobrar os esforços, fazer ainda mais, para da próxima controlar melhor.
E assim esgotamos a vida das fontes profundas dos nossos ecossistemas.
Eis o que ouvimos dizer nestas alturas: “lutou muito, foi muito corajosa, mas não foi capaz de o vencer”; “se ao menos tivesse conseguido transformar as suas emoções a tempo”, não perdoou o seu passado”, “porque é que não foi ao médico mais cedo”, “porque não procurou alternativas aos médicos”, porque e que não fez o que os médicos disseram” a lista continua… quando adoecemos em vez de lidar com o que está a acontecer, lidamos com a expectativa cultural de estar à altura do “inimigo”, é aqui que perdemos o contacto com a realidade: seja da gravidade ou inevitabilidade da nossa partida ou da morte dos que amamos, seja do declínio vertiginoso dos ecossistemas do nosso planeta.
“Uma pessoa tem apenas que olhar para ver que nos
troncos mortos há muito mais coisas vivas do que nos
troncos vivos.” (Powers 2019)
Eis a dura verdade, todas as conversas que não temos sobre a morte roubam-nos a vida.
Estas três mulheres não morreram porque se portaram mal, porque não foram ao ginásio, não fizeram terapia ou falharam o exame anual, ou porque perderam uma batalha; morreram porque a morte as matou, e mesmo que ainda quisessem mais um jantar com os seus amigos, a grande família estava pacientemente à espera.
Falo e falarei sobre elas e chorarei a ausência dos meus mortos mais próximos e de todas as conversas que não pudemos ter juntos sobre o lado de lá, na mediação nada mediadora de uma unidade de cuidados paliativos.
Guardarei a coragem e a beleza paradoxal do corpo que se entrega como uma lenta reverência, ao tronco morto que é útero de tanta, mas tanta vida regenerativa.
Por favor não nos calemos perante o violento silêncio da modernidade, a morte é um direito que todos temos.
Não é possível pertencer ao fluxo da vida sem pertencer à inevitabilidade da morte.
Referências:
- Oliver, Mary; Blue Horses: Poems, Penguin Press ,2014
- Jenkinson, Stephen, Die Wise, North Atlantic Book, 2015
- Powers, Richard, The Overstory, Penguin House, 2019
- Karpman, Stephen; A Game Free Life, Drama Triangle Publications, 2014
Para citar este artigo:
ALPANDE, Ana. Todas As Conversas Que Não Temos Sobre A Morte Roubam-nos A Vida. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-51/todas-as-conversas-que-nao-temos-sobre-a-morte-roubam-nos-a-vida/, número 51, 2024
Estas três mulheres não morreram porque se portaram mal, porque não foram ao ginásio, não fizeram terapia ou falharam o exame anual, ou porque perderam uma batalha; morreram porque a morte as matou, e mesmo que ainda quisessem mais um jantar com os seus amigos, a grande família estava pacientemente à espera.
Falo e falarei sobre elas e chorarei a ausência dos meus mortos mais próximos e de todas as conversas que não pudemos ter juntos sobre o lado de lá, na mediação nada mediadora de uma unidade de cuidados paliativos.
Guardarei a coragem e a beleza paradoxal do corpo que se entrega como uma lenta reverência, ao tronco morto que é útero de tanta, mas tanta vida regenerativa.
Por favor não nos calemos perante o violento silêncio da modernidade, a morte é um direito que todos temos.
Não é possível pertencer ao fluxo da vida sem pertencer à inevitabilidade da morte.
Ana Alpande
Colunista e Autora regular da Revista
Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias
A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.
Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.
O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.