artigo de Sofia Batalha

Os Espelhos que nos Enclausuram

3 MIN DE LEITURA | Revista 51

“Sair da sala de espelhos faz-nos rasgar ao mundo.”
in O Santuário, Ensaios de Eco-Mitologia, p.192, de Sofia Batalha

 

A metáfora do espelho é hoje corrente, tendo caído no léxico comum e tornando-se num bode-expiatório que justifica a perniciosa lente individualista e superficial. Bem, já deu para perceber o quanto discordo desta metáfora tão usada por tudo e por nada. “Tudo o que vês é um espelho de ti” – na verdade uma concepção bastante perigosa e limitada.

A imatura ideia de que tudo é um “espelho-meu” é uma espécie de distorção do entrelaçamento visceral e ecológico, que, no entanto, reverte e limita tudo ao “eu”. Tudo fica sobre nós, sobre as nossas narrativas, símbolos e “missões”. Tudo nos espelha afinal, pois estamos no centro da nossa experiência. Ficamos incapazes de ver fora destes reflexos assépticos e desconjuntados. Numa aspiração a ideais de unicidade, aprisionamo-nos numa narrativa linear e de reflexos binários, onde nunca questionamos a centralidade da nossa visão. Tudo isto é um sintoma e alimenta constantemente o exílio da individualidade em que acreditamos viver.

Ao longo do livro do Santuário, exploro a metáfora do espelho que enclausura a mente moderna, e, na página 67, refiro: “Quando estes espelhos que nos encarceram racham, podemos acolher a possibilidade de sermos múltiplas inteligências — abarcando a diversidade racional, emocional, sensorial, somática, espiritual e relacional. Temos de cuidar, pois todos fomos aculturados, ensinados e educados a achar que a capacidade intelectual de reflexão está acima de todas as outras formas de aprendizagem, significado e entendimento.” E é uma prática este movimento de rachar reflexos binários em humildade, de partir as ilusões narcísicas de que tudo é sobre nós, como nos tem sido sussurrado pelas correntes perigosas de “desenvolvimento pessoal”; assim como a necessidade de conter e domesticar tudo aos nossos significados e conclusões próprios – um acto também necessário, apenas contesto a sua centralidade como último ou único objectivo. 

Como refiro na página 93 e 94: “Sair da sala de espelhos leva a uma inevitável e dolorosa desconstrução da identidade, pois temos muito medo de não saber quem somos, principalmente numa sociedade baseada no culto do indivíduo. Recordamos o mito grego de Narciso, que se apaixonou pelo seu próprio reflexo na Água, rejeitando o amor da ninfa Echo. Este mito tece a fatalidade de nos fecharmos no nosso próprio reflexo. Freud usou-o para denotar um grau excessivo de auto-estima ou auto-envolvimento, uma forma de imaturidade emocional. Mas, como Sophie Strand recorda neste mito grego de Narciso, apesar de cativo do seu reflexo, ele ainda o faz na Água, num território e ecossistema vivos. Desde aí as coisas pioraram bastante, pois enclausuramo-nos cada vez mais. A questão é que, enquanto nos fechamos na sala de espelhos, negamos a pluralidade e ecologia de saberes, exilando a diversidade de conhecimentos e violentando a imaginação. Negamos a profunda sabedoria “inter-trans-disciplinar,” colectiva e orgânica. Este narcisismo cultural, recriado num ambiente asséptico e tecnológico corrói a humildade, catastroficamente negando o relacional e o parentesco.”

Exactamente como desdobro na página 100: “Um dos desafios de partir os espelhos desta sala são as crenças binárias, hierárquicas e absolutistas, como temos vindo lentamente a assumir, ou como esta câmara de eco nos fecha em verdades monolíticas. O redutor pensamento binário faz-nos ignorar a delicada e subtil energia selvagem e paradoxal, sendo tão certa como errada. O absolutismo, por sua vez, exige uma (nunca duas, sempre apenas uma) resposta final absoluta, tendo muita dificuldade em trabalhar com a impermanência, a ambiguidade ou os paradoxos. Depois ainda temos o insidioso pensamento hierárquico presente em muitos modelos e métodos, como a ideia da escada da consciência, em que à medida que maturamos, subimos e evoluímos. Desta lógica linear conclui-se naturalmente que há consciências mais e menos evoluídas, quer dizer que se estiver num estado específico de maturação da individuação, sou mais evoluído que o outro e posso olhá-lo cima, seja planta, animal, cultura ou pessoa.”

É preciso coragem e loucura, assim como cuidado e comunidade, para nos aventurarmos fora destes espelhos, como refiro na página 213: “Com a recuperação da voz, da escuta e da visão prismáticas, além da coragem para estar fora da sala de espelhos, assumimos como os nossos hábitos de comunicação extractivistas nos deixam exaustos, esgotando as possibilidades sazonais de significados híbridos, mutáveis e partilhados. (…) para estarmos presentes precisamos de desmembrar e desfazer a identidade actual, pois a história de conexão é muito mais longa e antiga que estes espelhos de dissociação.

 

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Para citar este artigo:

BATALHA, Sofia. Os Espelhos que nos Enclausuram. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-51/os-espelhos-que-nos-enclausuram/, número 51, 2024

Exactamente como desdobro na página 100: “Um dos desafios de partir os espelhos desta sala são as crenças binárias, hierárquicas e absolutistas, como temos vindo lentamente a assumir, ou como esta câmara de eco nos fecha em verdades monolíticas. O redutor pensamento binário faz-nos ignorar a delicada e subtil energia selvagem e paradoxal, sendo tão certa como errada. O absolutismo, por sua vez, exige uma (nunca duas, sempre apenas uma) resposta final absoluta, tendo muita dificuldade em trabalhar com a impermanência, a ambiguidade ou os paradoxos. Depois ainda temos o insidioso pensamento hierárquico presente em muitos modelos e métodos, como a ideia da escada da consciência, em que à medida que maturamos, subimos e evoluímos. Desta lógica linear conclui-se naturalmente que há consciências mais e menos evoluídas, quer dizer que se estiver num estado específico de maturação da individuação, sou mais evoluído que o outro e posso olhá-lo cima, seja planta, animal, cultura ou pessoa.”

Sofia Batalha

Sofia Batalha

Eco-Mitologia e Ecopsicologia; Fundadora e Editora da Revista

Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais. Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.

Certificada em Ecopsicologia e Mitologia Aplicada pela Pacifica University, nos EUA. Identifico-me como pós-activista, fazendo parte do Advisory Board da The Emergence Network.

*Homenagear hystera. Recordar a capacidade de resposta. (des)aprender em conjunto.

Podcast Eco-Mitologia
Autora de 11 livros & 2 (Des)Formações
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🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade. Ver próximos eventos aqui.