O Cântico dos Cânticos

Coluna de Amala Oliveira

3 MIN DE LEITURA | Revista 51

Holografia de Beltane

 

É sabido que as pedras falam. Ou melhor, transmitem. Projectam hologramas de memória de tempos além do tempo. Ou pelo menos é assim que o entendo.
Lembro-me bem da primeira vez que, em menina, comunguei com uma pedra, colocando-a dentro da minha boca e depois dentro da minha yoni. Havia de se passar muitos anos até eu saber que esta é uma prática milenar, a introdução de pedras na parte mais íntima da mulher para limpeza, harmonização, cura e profecia.

Recordo as imagens vívidas que a pedra despertou em mim. Era eu uma mulher de tez escura, nua, deitada numa estrutura de pedra quadrada, fazendo amor frente a um altar dentro de um templo na floresta. Esse devaneio erótico, como um sonho, veio a repetir-se vezes sem conta ao longo da minha meninice, com crescendo de cenários, pessoas e interacções de intensidade sexual cada vez maior.

Como é que eu, criança nascida numa família remediada, rural e católica, tinha dentro de mim tais imagens de teor vívido, sofisticado e, atrevo-me a dizer, altamente pornográfico?
Hoje sei que o corpo, biblioteca viva, capta, guarda e reverbera informações. Que os ossos defendem ferozmente por milhares de anos os testemunhos da existência. E é por essa incrível capacidade que conseguimos descortinar um pouco da vida dos nossos antepassados e antepassadas. Os ossos, essas “pedras” que dão estrutura às nossas carnes. As pedras, esses “ossos” que dão estrutura às paisagens da Terra.

E se para além dos ecos do acto de existir, o nosso esqueleto, numa sequência genética ou mágica, nos concedesse vislumbres de vidas passadas por nós ou por ancestrais que nos habitam, como um coro numa peça de teatro grego?
Por muito tempo procurei explicação para as “visões” que de tempos a tempos assomavam. Fui escrevendo-as, descrevendo, perseguindo justificação, argumento ou fundamento em várias áreas, das mais científicas às mais esotéricas. Ainda hoje não sei de onde provêm as clarividências, mas aceito-as sabendo que, na maioria das vezes, acabam por ter sentido e um propósito muito afinado.

São muitas as vezes que despontam precisamente em santuários de pedras, como se aí o cérebro activasse antenas de longo alcance e captação remota. São várias as histórias pessoais em que “decifro” campos holográficos (sem conhecimento prévio do que os lugares contêm) para mais tarde, buscando veracidade das visões, chegarem as suas confirmações históricas ou académicas. Como não me considero um ser especial nem dotada de capacidades magníficas, acredito firmemente que todas e todos nós temos estas aptidões dentro.

Muitas destas “aparições” deixam-me uma saudade imensa, uma ausência nostálgica no coração que procuro colmatar manifestando, o melhor que posso, esses hologramas na vida do agora. Assim é com os antigos ritos pagãos da Sexualidade Sagrada.

Beltane. Fogo da Terra. Fogo no ventre. A dança bendita das polaridades terreais-cósmicas. O rejúbilo da fertilidade, dos prazeres e da alegria de viver.

Vivo em Portalegre, a cidade porto alegre, que dizem ter sido edificada por “Lysias, filho (ou capitão) de Baco, filho de Semele, que aqui veio ter, de idade avançada, pelos 1300 anos antes de Jesus Cristo; e, achando o sítio a seu gosto, edificou uma fortaleza e um templo, consagrado a Dionísio ou Baco, seu deus. (…) A fortaleza e o templo eram no sítio onde hoje existe a ermida de S. Cristóvão e ainda se dá o nome de ‘ribeiro de Baco’ a um arroio que corre próximo da ermida.” (Pinho Leal, Das origens de Portalegre – JOSÉ D’ENCARNAÇÃO)

Aqui perto de mim encontra-se o Menhir da Meada considerado o menir mais antigo do mundo, com cerca de 7000 anos. A sua expressiva forma fálica e a denotada glande, delimitada pelo prepúcio marcado com um relevo que rodeia a extremidade superior deste monumento, assim como as gravuras serpentiformes, conferem-lhe, claramente, atributos evocativos à fertilidade.

Também no concelho temos a ermida da Nossa Senhora dos Prazeres, onde a devoção segue viva pela mão de mulheres velhas e novas. São muitos os ecos dos grandes ritos da fertilidade. São muitas as vozes sussurradas a quem tenha a paciência, a humildade e a dedicação de aprender a ouvi-las.

Os hologramas de gente pintada, que dança à volta da fogueira cerimonial com máscaras de folhas e peles imitando animais e espíritos do bosque, que se une em gozo e orgasmo tornados oração, súplica e veneração permanecem em projecção-inspiração.

Desde o momento da nossa concepção até à nossa última respiração, temos a ancestralidade a falar dentro de nós, cantando nos ossos o que precisamos de saber, de aprender, de recordar, de não repetir.

Quem sabe precisemos de encenar de novo os ritos Beltânicos para entender verdadeiramente o nosso parentesco com a Mãe Terra, com o Pai Céu? Para compreender este fazer amor em devoção com a Natureza Sagrada dentro? Para reconhecer que somos todos e todas irmãos e irmãs numa só Humanidade, onde as fronteiras, as diferenças de raça e credos são meras ilusões, feitiços infelizes que nos empobrecem e orfanam?

Preparo as pedras cerimoniais para o rito com as minhas irmãs e irmãos. Que o fogo se acenda, que comece a celebração. Que as fagulhas do Espírito nos incandesçam.

 

Para citar este artigo:

OLIVEIRA, Amala. Holografia de Beltane. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-51/holografia-de-beltane/, número 51, 2024

E se para além dos ecos do acto de existir, o nosso esqueleto, numa sequência genética ou mágica, nos concedesse vislumbres de vidas passadas por nós ou por ancestrais que nos habitam, como um coro numa peça de teatro grego?
Por muito tempo procurei explicação para as “visões” que de tempos a tempos assomavam. Fui escrevendo-as, descrevendo, perseguindo justificação, argumento ou fundamento em várias áreas, das mais científicas às mais esotéricas. Ainda hoje não sei de onde provêm as clarividências, mas aceito-as sabendo que, na maioria das vezes, acabam por ter sentido e um propósito muito afinado.E se para além dos ecos do acto de existir, o nosso esqueleto, numa sequência genética ou mágica, nos concedesse vislumbres de vidas passadas por nós ou por ancestrais que nos habitam, como um coro numa peça de teatro grego?
Por muito tempo procurei explicação para as “visões” que de tempos a tempos assomavam. Fui escrevendo-as, descrevendo, perseguindo justificação, argumento ou fundamento em várias áreas, das mais científicas às mais esotéricas. Ainda hoje não sei de onde provêm as clarividências, mas aceito-as sabendo que, na maioria das vezes, acabam por ter sentido e um propósito muito afinado.

Amala Oliveira

Amala Oliveira

Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator

Sou Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator, pioneira da Sexualidade Sagrada em Portugal, vivendo-a e partilhando-a como um caminho de devoção, cura e revelação.
Investigo o Paganismo e Xamanismo Ibéricos, tendo sido iniciada na Bruxaria Tradicional Portuguesa pela minha mãe. Sou Buscadora de Visão, Temazcalera e Guardiã de Fogo Sagrado pela linhagem da Abuela Margarita.
Herbalista aprendiz do mestre alquimista Juan Plantas nas plantas mágicas e medicinais da Península Ibérica, sou a fundadora do projecto SAGRAR e autora do Oráculo dos Animais da Península Ibérica.