Estórias Simples
Coluna de Patrícia Rosa-Mendes
4 MIN DE LEITURA | Revista 51
Do poder e do amor
“Our life like a breath, then, a give
And a take, a bridge, a central movement,
Between singing a separate self
And learning to be selfless.”
David Whyte, Essentials
(A nossa vida como um sopro, então, um dar / e um receber, uma ponte, um movimento central, / entre cantar um eu separado / e aprender a não ter eu – tradução livre)
Trocadilho entre self-eu/ego e selfless-sem eu/ego, sendo que selfless pode ser traduzido por “sem egoísmo”
O que se passa com os homens que não gostam de mulheres? E com as mulheres que também não gostam de mulheres? Recentemente, confrontei-me com dois episódios de violência dirigida especificamente a mulheres, que me chocaram profundamente: um, passou-se na Austrália, com um homem que invadiu um centro comercial e atacou e esfaqueou 18 mulheres, matando algumas e deixando outras em estado crítico. O outro, foi-me contado por uma amiga: um ataque gratuito de um homem a uma jovem no Metro de Lisboa.
Ambos me falam de uma misoginia tão entranhada quanto violenta, enquanto me deixam perplexa: porque é que as mulheres são uma tão grande ameaça, aos homens e aos poderes vigentes? Que mentalidade tão infantil é esta que não suporta nenhuma alteração ao status quo, interpretando-a como agressão à sua identidade? E que identidade é esta que se baseia na ideia de superioridade e de direito intrínseco a exercer um domínio sobre o Outro? O que leva a tanto ódio? E como é que este ódio não é reconhecido pelo que é?
A misoginia é a primeira e mais antiga forma de discriminação, presente em todas as culturas e sociedades que conhecemos, desde o início da história (mas, aparentemente não durante as culturas e civilizações da pré-história). Ela é uma das marcas daquilo que conhecemos como o sistema político e social do Patriarcado, um sistema cuja premissa mais enraizada é a do domínio, a forma como concebe o poder. Neste sistema, o mais importante é ter poder, e ter poder é dominar algo ou alguém: terra, propriedade, bens, pessoas, animais, plantas, dinheiro, conhecimento, informação…. Seja o que for, só somos poderosos se dominarmos: domino uma técnica, domino uma forma de estar, domino através do dinheiro ou da posição, domino porque me sinto mais capaz ou melhor do que os outros, porque qualquer expressão da essência autêntica do outro me ameaça e me faz sentir inferior. Tenho de manter o outro sobre o meu domínio – figurado ou literal – para me sentir forte. Assim, todos nós, aqui chegados à vida, aprendemos desde cedo que temos de alcançar algum tipo de poder sobre alguma coisa ou alguém para conseguirmos sobreviver, física ou emocionalmente, e por muito que mais tarde vamos desconstruindo esta ideia, a verdade é que aquilo que nos moldou no início da vida, mantém-se nas profundezas do inconsciente.
Marion Woodman, a analista junguiana, dizia que a grande mudança da nossa sociedade é sair do paradigma do poder para o paradigma do amor, e que esse era o grande resgate do Feminino. Acrescento que é também o grande resgate do verdadeiro Masculino, já que o patriarcado é a expressão do masculino imaturo, uma distorção das energias arquetípicas masculina e feminina para serviço de uma sociedade baseada no ganhar poder a qualquer custo. Esta obsessão por domínio e poder vem de um único sítio: o medo. Medo de que a essência signifique fragilidade, a ideia enraizada de que vulnerabilidade é insuficiência, a mentalidade imatura do rapazinho que teme as mulheres e também os homens reais e maduros. Tem sido esta vontade de se afirmar enquanto poderoso, dominador, acima de todas as outras criaturas, o que tem estado por detrás de cada guerra, cada império, cada colonização, e que nos conduziu até ao lugar onde estamos hoje, enquanto habitantes deste planeta: um fio de navalha perigoso onde milhares de existências são dizimadas diariamente, e outros tantos milhares estão em perigo de o ser, as nossas incluídas. Jessica Taylor, psicóloga e autora, dizia recentemente que a misoginia deveria ser considerada uma ideologia como outra qualquer, pois enquanto não a reconhecermos dessa forma, nunca conseguiremos, verdadeiramente, extirpá-la e trazer equidade e justiça à sociedade.
Esta mudança do amor para o poder é a grande revolução, e pede-nos para abrir mão do que tem sido confortável até aqui. Convida a abrirmo-nos e a familiarizarmo-nos com a ideia de amor. Não o amor romântico dos filmes ou o sentimentalismo cheio de floreados. O amor não é um fluir onde tudo corre sempre bem, e somos felizes para sempre: essa é a idealização desenraizada da modernidade, os contos de fadas como hoje os entendemos, mas nada tem a ver com o amor. Na verdade, não sabemos nada sobre o amor, porque vimos de uma mente focada no domínio! O amor é a grande força de vida, a que nutre e acolhe, mas também a que faz o que é preciso ser feito.
O amor limpa os cocós, mete as mãos nas feridas, remenda e acaricia, e também corta e desata. O amor celebra o Outro como ele é, celebra-se a si mesmo com tudo, porque sabe que tudo tem lugar. O amor arregaça as mangas, parte pedra, persiste, constrói no tempo, resiste, a cada dia e momento onde parece que nada acontece, nada muda e só há o desconforto e o vazio; pede entrega e compromisso, é vivido a cada momento, e não nos torna superiores, recorda-nos que somos feitos de terra e de vísceras, tanto quanto de pó de estrelas. Torna-nos humanos.
Nesta fase da minha vida, não tenho ilusões de que esta revolução alguma vez vá acontecer. E, ainda assim, cada vez mais sinto que é vital que cada mulher e cada homem maduros se aliste nas suas fileiras e seja um seu arauto. Talvez seja a única coisa que cá estamos a fazer: a descobrir o que é isto do amor. Como dizia Joni Mitchell na sua canção Both Sides Now, “olhei para o amor de ambos os lados, agora / desde o dar e o receber e, ainda assim, de alguma forma / são as ilusões do amor que recordo / eu realmente não conheço o amor / eu realmente não conheço de todo o amor” (tradução livre).
Numa altura em que a Terra se enche, mais uma vez, do fogo apaixonado da Maia Madura, que os nossos parentes mais-que-humanos se multiplicam numa ode à diversidade da vida, à sua persistência constante e à sua resiliência selvagem, o amor parece surgir em todo o lado. O amor à Vida, a essa espantosa e terrífica força que, no fim de tudo, pedirá a nossa rendição ao Mistério, e nos mostrará que também nós, por muito poder que tenhamos adquirido, acabaremos no ventre da mãe terra, nos seus braços envolventes, no acto final. Porque afinal, todos os ódios, todas as ideologias são apenas uma ilusão, e só permanece o que é real.
Para citar este artigo:
ROSA-MENDES, Patrícia. Palavras. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50/palavras/, número 50, 2024
Esta mudança do amor para o poder é a grande revolução, e pede-nos para abrir mão do que tem sido confortável até aqui. Convida a abrirmo-nos e a familiarizarmo-nos com a ideia de amor. Não o amor romântico dos filmes ou o sentimentalismo cheio de floreados. O amor não é um fluir onde tudo corre sempre bem, e somos felizes para sempre: essa é a idealização desenraizada da modernidade, os contos de fadas como hoje os entendemos, mas nada tem a ver com o amor. Na verdade, não sabemos nada sobre o amor, porque vimos de uma mente focada no domínio! O amor é a grande força de vida, a que nutre e acolhe, mas também a que faz o que é preciso ser feito.
Patrícia Rosa-Mendes
Terapeuta Transpessoal
Instrutora de Meditação
Formadora na EDT – Escola Transpessoal
Tradutora
Contadora de Estórias
Mitologia – Arte – Eco-psicologia