artigo de fabrice olivier dubosc

Aspiração/Ser-saudoso

{ser-saudoso traduzido livremente do inglês be-longing, que se liga com pertença também}

5 MIN DE LEITURA | Revista 51

Aspiração vem do latim aspirare, que significa “respirar, inalar/exalar”. É em parte semelhante a in-spiration, que tem uma etimologia semelhante e significava – entre outras coisas – receber do ar o dom da adivinhação.

Numa fabulação especulativa na qual o sentir e o pensar se misturam com centelhas visionárias – a aspiração exprime o que a respiração exprime no plano físico. Faz parte do processo e do ritmo através dos quais metabolizamos as experiências vividas, gerando imagens e histórias vitais partilhadas em ressonância relacional, como no cenário de “chamada e resposta” de um congresso.

Con-gressus significa andar-com, ousar um passo (gressus latino que significa a medida de um único passo, o movimento inicial, sair). A aspiração pode ser um primo em terceiro grau da utopia e da paixão. Com um ritmo diferente, alimentado pela substancialidade da confiança e pelos vestígios que o sonho conjunto pode oferecer, em vez do tumulto da ideologização de uma fome de soluções não lamentada.

A aspiração praticada como a morte/renovação do desejo pode aterrar os impulsos demasiado ideais na pureza de um amanhã luminoso. O ritmo da respiração, de facto, é dado pela inspiração e expiração… até ao último suspiro. Ad-spirare – spirare significa inspirar e expirar. Em italiano, de facto, ainda usamos spirare para a passagem da vida para a morte nessa última expiração. A aspiração é também a sucção que cria um vazio ativo necessário.
Apenas inspirar, inspirar apenas, pode falar de futuros idealizados tanto quanto de futuros distópicos, afastando-se do ritmo para a validação binária do que imaginamos como correto e adequado.

O sonho idealizado de soluções ou de agência pode ser uma fuga racional à co-sensação, ao con-senso. Nos sonhos reais, durante a noite, os nossos corpos compensam e reorganizam as narrativas dos nossos padrões de pensamento idealizados ou niilistas…

Talvez a a-spiração inclua uma forma de desapego, que, no entanto, não deve ser entendido como desapego, anafectividade, resignação, ataraxia, mas como uma leveza ativa e risonha do ser. Algo simultaneamente mais leve e mais forte do que a desilusão – permitindo a renovação do pólo de inspiração dentro desse ritmo imaginal mais alargado que constitui a aspiração.

A nostalgia, ou melhor, a saudade, está no meio. Não é certamente indiferença, embora possa fechar-se e murchar em melancolia, significando uma incapacidade de deixar ir, de reconhecer a perda, de expirar. É por isso que seria ideal para um ritmo interior, para evitar dependências excessivas, hiper-afectos. Mas isso, mais uma vez, é demasiado ideal. E enquanto a respiração é geralmente fundamentada num corpo não consciente, encontrar essa mesma fundamentação na nossa vida imaginativa/relacional é tanto uma prática como uma graça.

Na forma como recapitula e observa o processo passado virado para o passado, ou melhor, para o perdido, a nostalgia não é o oposto da aspiração. Pelo contrário, é uma das suas fontes, e talvez até um antídoto para a desilusão. É o testemunho interior de estar vivo e em processo.

Walter Benjamin, nas suas Teses sobre o Conceito de História, explica que o índice secreto que, a partir do passado, nos chama a redimir, a transformar e a cuidar das fissuras, nasce da nostalgia do “ar que respirámos, das pessoas com quem podíamos ter falado” e da herança das ruínas. É a ressonância e o passado e a presença, é uma maior fidelidade ao processo em nós que se manifesta através do desencadeamento, da faísca, da ligação, do rastreio dentro e para além da nossa resistência a ele. Uma generosidade anterior.

Enquanto o impulso utópico virado para o futuro nos arrasta para a repetição, a ressonância de virar uma perspetiva visionária para o passado permite-nos re-emparelhar, reassociar, reconectar.
Nas relações (com as pessoas, com o passado, com as experiências, com os lugares em que vivemos), este ritmo interior de aspiração, mediado pela nostalgia e compensado pela confiança nos processos que toda a partida exige, tende para o diálogo, porque se liberta substancialmente – em momentos de graça incómoda! – da possessividade, do desejo de assimilar o outro, de o reduzir ao conhecido, de anestesiar a possibilidade de aprendermos juntos com a experiência.

James Hillman recordou-nos que existem três palavras em grego para as camadas escondidas na palavra desejo. Himeros, é o impulso, o desejo físico de algo que podemos agarrar e consumir quando o desejo nos apetece. Necessário e volátil, como uma refeição. Sempre a precisar de ser digerida. Anteros é a forma de desejo que responde ao desejo dos outros, é troca, negociação, medição de distâncias, posturas, poderes e reciprocidade. E, por fim, Pothos é o desejo daquilo que é inatingível, fugidio, incompreensível, é aquilo que nos faz desejar mais e melhor, que não está preenchido, não pode ser totalmente preenchido ou realizado e que, no entanto, nos move e avança. A forma como a tradição chassídica expressou isto foi dizendo que o casamento nunca é realizado, mas apenas o início de um noivado. Ser noivo é um noivado. Para a renovação da saudade e da saudade.

De certa forma, isto é semelhante à nostalgia. Em árabe, existe uma palavra, Shawq, que condensa os três aspectos. A saudade pode estar presente na pertença e não ser consumida por ela.
Em grande escala, ao enfrentarmos as grandes crises históricas e nas narrativas que escolhemos, a aspiração forma hoje um desejo que não se satisfaz com o status quo humano excepcionalista, um desejo que quer envolver-se com o contexto metabólico mais amplo da realidade, tecendo a pertença com todas as espécies e através da vida e da morte.

Uma fábula mística persa do século XIII diz-nos que a primeira emanação do princípio gerador, o Logos divino, foi uma Trindade de irmãos. Quando a primeira irmã, a Beleza, captou o reflexo da graça sensorial, nasceram anjos do seu sorriso. Mas o segundo irmão, o Amor, que sempre foi o seu companheiro inseparável, ficou tão perturbado pelo seu próprio espanto ao sentir tal excesso que teve um movimento de hesitação, ficou subjugado, recuou… Então, a Saudade (ou Nostalgia), o terceiro irmão, agarrou-se ao Amor e interrompeu o seu voo: e nesse lugar-tempo de suspensão, nesse “terceiro corpo” vazio que se criara no hiato surgido entre o Amor e a maravilha da Beleza, graças, portanto, à Saudade, nessa poderosa dinâmica da sua relacionalidade, houve lugar para mais… aí, nesse espaço santificado, suspenso e cercado, nasceram o Céu e a Terra.

Mas se a Nostalgia se fecha sobre si mesma, se não valoriza o nascimento da Maravilha, se não permite que a angústia e a dor renovem a própria saudade da aspiração na ligação que nasce desse espaço de indeterminação e de renovação onde o mundo se vai criando e recriando – se a saudade geradora, no outro, é desautorizada, algo azeda.

A esperança desesperada cai como Ícaro, no seu voo em direção ao sol, na impotência do desespero, em vez da ligação mais do que vital à vida que um coração partido e uma confiança para além do fracasso poderiam gerar.

Textos de referência

  • Sorawhardî, L’Archange empourpré – ed. Henry Corbin, Fayard, Paris, 1976
  • James Hillman, Blue Fires, Adelphi, Milão, 1996
  • Walter Benjamin, Sobre o conceito de história – Einaudi, Turim, 1997

 

Para citar este artigo:

DUBOSC, Fabrice. Aspiração/Ser-saudoso. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-51/aspiracao-be-longing-ser-saudade-pertenca/, número 51, 2024

James Hillman recordou-nos que existem três palavras em grego para as camadas escondidas na palavra desejo.

Himeros, é o impulso, o desejo físico de algo que podemos agarrar e consumir quando o desejo nos apetece. Necessário e volátil, como uma refeição. Sempre a precisar de ser digerida.

Anteros é a forma de desejo que responde ao desejo dos outros, é troca, negociação, medição de distâncias, posturas, poderes e reciprocidade.

E, por fim, Pothos é o desejo daquilo que é inatingível, fugidio, incompreensível, é aquilo que nos faz desejar mais e melhor, que não está preenchido, não pode ser totalmente preenchido ou realizado e que, no entanto, nos move e avança

fabrice olivier dubosc

fabrice olivier dubosc

Psicanalista, autor, tradutor, estudos de migração, investigador do Undecommons em psiquiatria descolonial

Psicólogo clínico e aspirante a terapeuta. É um brincalhão com palavras e pastéis; perdido e encontrado na tradução. Fabrice procura refúgio nas fendas e reúne aleatoriamente fragmentos de tempo profundo de recordações de várias vidas anteriores dentro desta. Está grato por ter parentes e amigos nesta aldeia transnacional dispersa; um filho adulto e uma filha adolescente continuam a ensinar-lhe a agarrar-se e a deixar-se ir.
Como investigador em pós-ativismo decolonial, também é ativo em subcomunidades fugitivas eco-psico-sociais locais e transnacionais e na educação. Publicou uma série de livros e artigos, maioritariamente em italiano.
Clinica del la Crisi: https://clinicadellacrisi.home.blog