Mil-em-Rama

Coluna de Maristela Barenco

3 MIN DE LEITURA | Revista 51

Aprendendo a conjugar o verbo “Sair” como um compromisso Ético.

 

Aprender a ler criticamente a conjuntura de nosso tempo não é tarefa fácil. Sobretudo porque a própria conjuntura se constrói de forma tão subliminar, que coloca à frente todo um imaginário disponível a cada um de nós. O imaginário, aqui, que nos captura constitui-se como um símbolo de ostentação e status: o estresse, o cansaço e a falta de tempo. Há milhares de imagens-referência sustentando esses ideários: Domenico De Masi fala do executivo atarefado, sobrecarregado, suado e fazendo seu teatrinho empresarial.
Isso tem acontecido com a chamada Sociedade do Desempenho, postulada pelo sul-coreano, Byung Chul-Han, radicado em Berlim e professor de Filosofia.
Esta forma atual de organização do capitalismo vem na esteira da sociedade disciplinar, já prevista e estudada por Michel Foucault, e da sociedade do controle, postulada por Gilles Deleuze. O que difere esse momento dos outros é que, na Sociedade do Desempenho, há forças outras atravessando o humano.
Se antes a relação de poder passava pela disciplina e depois pelo controle, em uma ambiência de negatividade, nesta fase, ousadíssima, passa por uma positividade ilimitada, cuja sensação de poder, ilimitado, conduz-nos a uma “servidão voluntária”. Não há nenhum algoz a nos dominar, objetivamente. Colocamos nossas vidas a serviço do desempenho e produtividade por livre e espontânea vontade (ou cegueira?). O excesso de liberdade virou uma compulsão de realização.
As consequências são claras: Síndrome de Fadiga de Informação (SFI), paralisia de análise e sistema nervoso viciado em estímulos, hiperatenção, mais de um bilhão de doenças do cérebro, como nos diz o neurocientista Miguel Nicolelis, a transferência de um governo do mundo para as Big Techs, e a emergência do Cansaço, como uma maneira de existir, resultado de um projeto de ser humano automatizado.
A violência não é de ordem privativa, como no passado, mas neuronal: ela é saturante e exaustiva. Emerge dela um tipo de subjetividade cansada, culpada, que se acha sempre em débito e dívida.  Imputa-se a produção para si, sem a produção de si. A vida se tornou um empreendimento. E o cansaço, fundamental, coloca-nos em uma condição em que estamos fadados a falhar. Porque o corpo não consegue se submeter a tamanha violência, é preciso dopá-lo, medicá-lo. Ele adoece de todas as formas. A depressão fala sobre as tentativas de fracasso de submissão a esse processo.
Diante desse cenário, quero fazer referência a um texto, do filósofo argentino, Enrique Dussel, chamado Ética Comunitária (1979). No contexto, ele trazia uma reflexão sobre Ética e Moral. E essa imagem nunca me abandonou (essa é a habilidade dos grandes pensadores e escritores!), e hoje ela é mais pertinente do que nunca. O texto não era sobre religião. Mas ele usou a imagem do Povo de Deus, Hebreu, na Bíblia. Precisamente quando esse povo, altamente potente, tornou-se escravo no Egito. Então, entra Dussel e diz que as morais reformistas, ali, estavam preocupadas em pensar e produzir valores a partir da pergunta: “como ser bons no Egito”? Segundo ele, discutiam as normas, as virtudes, mas aceitavam o Egito como sistema vigente. Eram prescritivas e faziam gosto do verbo “dever ser”. Eram morais intrassistêmicas. Já Moisés, o líder bíblico, traz a seguinte pergunta: “como sair do Egito?” Sua pergunta é, pois, do campo da Ética. Ali, “sair” era uma metáfora teológica fundamental para a proposição de outro modo de viver. E a ética faz gosto do verbo “poder ser”, como potência e possibilidade.
Creio que grande parte das vezes temos colocado nossas terapêuticas e ideias a serviço de morais intrassistêmicas.
Assim tenho sentido o trabalho dos muitos coachs emergentes e de grande parte da literatura de autoajuda. O intento tem sido buscar formas de adaptarem e adoecerem pessoas a um contexto, que por si, é inadaptável, porque incompatível com a vida. É preciso que nos atentemos para a importância de verbos como “interromper” e “sair”. Em um cenário de monoculturas de modos de viver, “sair” pressupõe afirmar que há, sim, outros mundos e formas de organizar a vida e que “sair” constitui uma chave que precede todas as outras formas de cuidar da existência. A serviço de que ser humano e de que mundo, de fato, estamos: das morais intrassistêmicas ou da ética, que conduz a uma saída?

 

Para citar este artigo:

BARENCO, Maristela. Aprendendo a conjugar o verbo “Sair” como um compromisso Ético. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-51/aprendendo-a-conjugar-o-verbo-sair-como-um-compromisso-etico, número 51, 2024

Se antes a relação de poder passava pela disciplina e depois pelo controle, em uma ambiência de negatividade, nesta fase, ousadíssima, passa por uma positividade ilimitada, cuja sensação de poder, ilimitado, conduz-nos a uma “servidão voluntária”. Não há nenhum algoz a nos dominar, objetivamente. Nós colocamos nossas vidas a serviço do desempenho e produtividade por livre e espontânea vontade (ou cegueira?). O excesso de liberdade virou uma compulsão de realização.

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

Instagram: @mil_em_rama
E-mail: maristelabarenco@gmail.com