Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

2 MIN DE LEITURA | Revista 51

A Sensualidade das Flores

 

Há um ano escrevi sobre a integridade das flores.
Hoje escrevo sobre a sua sensualidade.
Pois no resgate da alma, acontece o resgate do corpo.
Hoje em homenagem ao santuário do Endovélico.

 

A força do sangue. Aquele que o espinho da rosa derrama. Para nos recordar que somos também corpo. E no toque acetinado das suas pétalas, recordamos a ternura da pele que há em nós.

A força do sangue. Aquele que a parecença de alguém proclama. Para nos recordar que somos também uma só árvore. E no aroma forte da sua casca, recordamos o desafio inevitável da pertença.

A força do sangue. Aquele que o laço invisível reclama. Para nos recordar que a pele e a árvore vão para além do corpo e da parecença. E na escuta silenciosa do pulsar do coração, recordamos o calor do abraço e do círculo inesperado.

Roxas, amarelas, brancas, vermelhas, despontam sensuais do chão verde. Com a força do sangue. De quem traz consigo a promessa da vida. De muitos. De todos aqueles que compartilham da sua sensualidade, no encontro com elas. Inebriantes. E na sua respiração caleidoscópica, sentimos a nossa.

Num mundo que nos pede para não parar, sentimos a respiração caleidoscópica dela, a da primavera. E respirando com ela, respiramos a inevitabilidade de lhe sucumbir. À sua sensualidade. Inebriados pelos sentidos, como não sucumbir ao manto folclórico que ela estende, onde poisam também as abelhas? Poisamos nós, num tempo que é diferente daquele que o mundo exige, num tempo para além do tempo, que nada exige. A não ser que sucumbamos ao aroma da flor de laranjeira, ao zumbido e à promessa do mel. O remédio pelo qual tanto grita o sistema nervoso. Grita para que possamos ouvir: hoje é primavera. Que hoje ela é rainha e as flores as suas coroas. Que hoje o verde é rei e as ervas o seu trono. Hoje e sempre.

Num mundo que exige que nos afastemos, ouvimos a vontade magnética dela, a da primavera. E sentindo a vontade dela, entregamo-nos às suas delícias. O remédio pelo qual gritam a pele, a pertença e o círculo. Poisamos nós, e as abelhas, num tempo para além do tempo que nada exige. A não ser que nos reencontremos.

Com a força do sangue. Aquela de onde a papoila desponta. Para nos recordar que também somos vida. E na audácia delicada da sua inocência, recordamos tudo aquilo que não pode ser quebrado.

Com a força do sangue. Aquela de onde a espiga se ergue ao lado da papoila. Para nos recordar que somos mais do que um. E na pluralidade dos seus bagos, recordamos a do mundo. A de um outro mundo que ficou esquecido e intocado, para além do tempo.

Com a força do sangue. Aquela de onde o rosmaninho nos surpreende pelo atrevimento do seu encanto. Para nos recordar que a imperfeição é rebelde e a diferença é transgressora. E na sua irreverência, transgredimos. Criando caminhos de regresso, inquebráveis e para além do tempo.

Hoje é primavera, onde rainha e rei são apenas palavras que facilitam a compreensão humana. Mas que ficam muito aquém do que é a essência dela. Da sua sensualidade. E da força do seu sangue. Ajudemos, pois, o sistema nervoso a recordar. O tempo para além do tempo onde tudo é intenso e devagar. A recordar a sensualidade das flores e a força do nosso sangue. Ajudemos, pois, o sistema nervoso a recordar a ternura da pele, a inevitabilidade da parecença e o sustento do laço. A intocabilidade da inocência, a natureza plural de tudo e a urgência da rebeldia.

Deixemo-nos então cair sobre o chão verde e florido como um gesto de transgressão profunda. O gesto de sucumbir ao tempo da primavera. Quanto tudo é tanto, deleitemo-nos com ela.

 

Para citar este artigo:

SEVINATE, Ana. A Sensualidade das Flores. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-51/a-sensualidade-das-flores/, número 51, 2024

Hoje é primavera, onde rainha e rei são apenas palavras que facilitam a compreensão humana. Mas que ficam muito aquém do que é a essência dela. Da sua sensualidade. E da força do seu sangue. Ajudemos, pois, o sistema nervoso a recordar. O tempo para além do tempo onde tudo é intenso e devagar. A recordar a sensualidade das flores e a força do nosso sangue. Ajudemos, pois, o sistema nervoso a recordar a ternura da pele, a inevitabilidade da parecença e o sustento do laço. A intocabilidade da inocência, a natureza plural de tudo e a urgência da rebeldia.

 

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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